quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A saga continua

A minha mãe, Maria José do Vale, que fora convidada a participar de concursos de beleza de sua época, agora era um trapo humano. Poder-se-ia dizer que ela se mantinha viva para que nós , eu e minha irmã, com menos de três anos ambos, pudéssemos viver. Parecia um cadáver ambulante. Os ossos proeminentes se destacavam sob a veste surrada e única. Os olhos tristes e fundos de tanto chorar, pareciam perdidos na incerteza. Quem daria um emprego àquela pobre mulher? Nem como prostituta do mais baixo meretrício. Nada mais existia nela que lembrase a jovem de poucos anos atrás. E passara há pouco dos vinte anos de idade...Tinha que mendigar. O corpo doente e cansado das tristezas não servia-lhe para nada. O espírito estava abatido e desiludido. Só os filhos lhe restava. E éramos como duas cruzes pequenas mas, muito pesadas. Tentou creches. Irmãs de Caridade não tiveram caridade. Nos recusaram. É verdade que, por causa da guerra, os orfanatos estavam lotados. Europeus e asiáticos eram trucidados e nós sofríamos a consequência deste genocídio. Morriam lá de bomba e bala. Morríamos aqui de fome. Lembro- me de muitas coisas ruins. Não consigo lembrar-me das boas, se é que houveram. Por exemplo, lembro-me da sopa dos pobres. D. Dulce , esposa do interventor Benedito Valadares, junto com d. Sara , esposa do prefeito JK, criaram o que chamaríamos hoje de ONG, com o objetivo de fazer caridade ou ocupar o tempo ocioso das madames da alta sociedade. Faziam chás beneficentes e uma sopa, que, uma vez por semana, era distribuida aos mais miseráveis entre os miseráveis. Lá íamos nós. Era uma sopa suculenta. Tinha até carne!Para comê-la, tínhamos que enfrentar um fila enorme. Era um quadro dantesco. Pessoas maltrapilhas e fedorentas ansiosas por um prato de sopa. Ganhávamos um pãozinho cada um. Eu tinha que alimentar a mim e as lombrigas, tão comuns entre os pobres até hoje. Elas infestavam o meu intestino e, por certo, os de minha mãe e irmã. Mas, que sopa gostosa! Só quem já passou fome sabe como é agradável uma sopinha quente chegando no estômago. Depois íamos para um ponto de bonde. A minha mãe pagava uma passágem para ela- crianças de colo não pagavam- forrava o banco , deitava-nos e ficava sentada a dormir. Já éramos conhecidos dos motorneiros e condutores. Os passageiros até dividiam conosco a sua pobre merenda. O colo da d. Zezé era o nosso travesseiro. As suas mãos ossudas deslizavam pelos nossos cabelos a acariciá-los. Não raro, as gotas das suas lágriamas caiam sobre os nossos rostinhos. Nós não ligávamos. Já estávamos acostumados. Eu acho que ela, apaixonada, lembrava com saudades dos carinhos do meu pai. Talvez voltasse um pouco antes, quando era o "doce-de-côco" de sua família. Só eu e minha irmã lhe restaram. Eu já era, com três anos, um valioso colaborador. Aprendi rápido a arte da mendicância. Certa vez, a criança aflorou em mim. Passávamos em frente a uma pastelaria. Deveria estar com muita fome. Vi pastéis deliciosos em cima de um balcão. Não exitei.
Fui até lá e peguei um pastel. Estava a devorá-lo quando veio um grandalhão. Disse impropérios para a minha mãe e desferiu-lhe um violento ponta-pé na bunda. Nunca esqueci esta cena. Por causa de um mísero pastel! Lembro que ela chorou muito, de dor, vergonha, impotência. Certa vez o meu pai passava, como sempre muito elegante, ladeando uma jovem. A minhamãe mandou-me que fosse até ele e pedisse algum dinheiro. Lembro-me muito bem o que aconteceu. Cheguei e ele apertou o passo para que eu não o alcançasse. Corri e agarrei-o pelo paletó. Ficou furioso. Desvencilhou-se de mim, voltou até onde minha mãe estava e também desferiu-lhe um ponta-pé . Lembro-me que choramos eu, ela e minha irmã. Assim o tempo foi passando. Eu diria quem acostumamos até com a miséria. Já não me importava em dormir na rua. Se me humilhavam ainda era invulnerável. Era criança demais. Outros acontecimentos iguais aconteceram. Não vale a pena repetí-los. Até que chegou o Dia da Vitória. Os Aliados venceram às forças do Eixo. A guerratrouxe de volta os pracinhas sobreviventes. Todos esperavam por dias melhores. Getúlio havia promulgado a CLT que redimia a massa trabahadora. Diziam que ele se baseara na "Carta d'el Lavoro" de Mussolini. Deve ter sido invenção dos integralistas, nossos fascistas tupiniquins. Os italianos executaram , com muito ódio, o ditador fascista.A CLT socializava as relações entre o capital e o trabalho. Acho que está mais para o "New Deal" do presidente FDR. Roosevelt viera ao Brasil para saber se era verdade que Getúlio simpatizava com o fascismo. Getúlio nunca foi nada mais que getulista. Era um caudilho como tantos da época. Mandou encarcerar os fascistas e eles tentaram, comicamente, derrubá-lo do poder.Se deram mal. Getúlio mandou prendê-los agora como inimigos. Ele sabia ser um. Contam que dirigentes integralistas molhavam as calças quando o DIPE chegava. Os comunistas eram presos cantando a Internacional. Tudo indicava que, cedo ou tarde , dominariam o mundo. Isto é outra história. A minha ,fala de um garoto que, no entusiasmo da volta dos pracinhas, foi à Praça da Estação com sua mãe e irmã participar da festa cívica e patriótica. Festa bonita, com foguetes, música e discursos inflamados. Eu aproveitei para brincar de motorista em em meio as pessoas. Resultado: perdí-me de minha mãe. Talvez até ela, cheia de ufanismo, não tenha percebido, de pronto, o meu desaparecimento na multidão. Quando percebeu e saiu a procurar, um pasteleiro, ao ver chorando e sozinho, ofereceu-se para levar-me ao encontro da família. Antes, deveria ir aos patrões fazer o acerto da venda dos pastéis. E ai, começa a terceiira parte da minha saga. Depois eu conto.

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