quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O recrudecimento

A morte de João que gostava muito de queimar criança e morreu queimado, fez-nos voltar para Belo Horizonte. Voltei triste, antevendo o que me esperava e com saudades dos tempos em Araçai.Ali, pela primeira vez na vida, fui tratado como gente. Eu, que era considerado inferior ao cão da casa... Aconteceu o velório com muito choro. Enterraram João e o choro continuou copiosamente. O clima na casa era péssimo. Eu, nos meus 10 anos, não conseguia fingir. Sentia uma sensação de alívio. O meu principal algós, sádico e desumano, estava morto. É possível que o meu rosto refletia serenidade. Isto provocou nos outros da família um acirramento no ódio que por mim sentiam.O dentista ganhou um bom dinheiro em Araçai. Um parente rico morreu sem deixar herdeiros diretos. Os parentes próximos dividiram a bolada. Entre estes, o dentista. Ele já tinha lotes que , unidos, iam de uma rua à outra. Um tinha a sua casa. O outro era vago. Resolveu construir uma casa em um e barracões junto à sua casa. Eu fui ajudante de pedreiro daqueles que, enquanto descansam,carregam pedra. Até os pedreiros ficavam sensibilizados em ver aquele menino trabalhando mais do que eles.Voltava da Escola Paroquial e ...trabalho. Pesado . Duro. Que enchia as mãos do menino de calos. Houve um que comentou:"doutor, o senhor não acha que o menino está sendo muito sobrecarregado?" A resposta foi: "está com pena? Leva ele prá você. Aqui quem come trabalha.Não vou sustentar vagabundo." Não tinha horário para brincar. Quando o homem saia, eu aproveitava e ia no campinho de peladas.Jogava um pouco e vinha para casa com medo da represália. Não raro, delatavam-me e toma chicotadas. A pele se enchia de vergões. As vezes, sangravam. A dona vinha e punha salmora para não infectar. Os visinhos ouviam, mas, nada faziam. Nos domingos, católico praticante, o casal sempre ia à missa e comungava. Eram vistos como caridosos cristãos exemplares. Em casa, a minha desdita continuava. Construidos os barracões e a casa, para mim foi destinado um quarto sem piso e sem forro. O dinheiro não deu para terminar. Colocaram uma pilha de tijolos aqui e outra ali no quarto. Sobre elas uma porta velha. Sobre esta um colchão de palha e um travesseiro de paina. Ao lado fizeram um chiqueiro. O piso do chiqueiro era acimentado. Havia mais preocupação com a saúde do animal. Afinal seria comido. Valia muito mais do que eu. Eu seria encarregado de cuidar dele. O chiqueiro tinha que ficar perfumado o dia todo. Senão, couro. Pouco tempo depois, acolheram dois rapazes parentes. Um era fazendeiro. Foi dormir dentro de casa e tinha um quarto só para ele.A mãe dela mandava dinheiro para pagar a sua hospedagem. O outro, pobre, foi morar comigo no quarto. Este, logo teria outros moradores indesejáveis. Pulgas, baratas , ratos, lagartixas. Mosquitos de várias espécies. O lençol de sacos de farinha de trigo, antes amarelados, ficaram vermelhos como o sangue que os pernilongos chupavam até estourar. Ao lado havia outro quarto, forrado e taqueado, onde a dona guardava suas antiguidades. Valíamos muito menos que aquelas quinquilharias. Comia em latas de marmelada ou goiabada. Os garfos eram os mais baratos e reservados só para nós. O dentista exigia que deitássemos cedo. A sua casa era de respeito e não permitia que entrasem e saisem a qualquer hora.Exceção para o filho dele que restou. Este logo se casou e foi morar na nova casa. Antes da morte do João até que não era tão mau.Depois, talvez porque eu não demonstrei pesar, ele endureceu muito o tratamento a mim. Parecia encorporado pelo espírito cruel do irmão.Esta fase da minha vidafoi a pior de todas. Preciso de tempo para detalhar. Fica para a próxima.

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