terça-feira, 15 de setembro de 2009

A minha saga

O meu pai, Ângelo Suzana, segundo os seus conhecidos, era um homem bonito , vestia-se com muita elegância, era um profissional trabalhador e destemido, ousado industrial e químico. Apresentava um diploma de Engenharia Química que não podia ser contestado, já que era comum , em sua época, doutores em várias áreas ou diplomados em curso superior que nunca frequentaram uma faculdade. O país, imenso e imerso em miséria e atraso, tinha que aproveitar até os aventureiros que, pelo correio, mostrassem certa vocação para a função universitária. Comprava-se até patentes militares para a Guarda Nacional. Era "o tempo dos coronéis". Diziam que era a "Força Desarmada do Brasil". Não era bem assim. Estes "oficiais " tinham o direito de organizar suas milícias com armas bem sofisticadas e mandavam nos seus domínios tiranicamente. Até "Lampião", cangaceiro que mandou no nordeste durante 25 anos , ganhou a sua patente: capitão. O trato era o de combater o "Cavaleiro da Esperança", Luis Carlos Prestes, que assustava o governo de Arthur Bernardes com a sua coluna armada e treinada. Lutando e vencendo , Prestes cruzou o país. Mas, "Lampião" não aceitou combater Prestes. Dizem que chegou a vê-lo mas o bandido gostava de reverenciar um "cabra macho". O meu pai também foi um destes. Segundo o relato de um dos seus próximos companheiros, embora paulista, aliou-se à Getúlio Vargas para depor Wshington Luis e impedir a posse de Júlio Prestes, governador paulista e candidato à presidência vitorioso na eleiçao de 1930. Getúlio, derrotado nas urnas, tirou do conterrâneo Luis Carlos Prestes o direito natural de líder nacional. Assumiu o comando da revolta e se colocou, num governo provisório,como Chefe. Prometeu que entregaria o poder em 1932, após realizar uma eleição com voto universal. Pobres, negros ou brancos, mulheres , teriam o direto ao voto. Os paulistas não gostaram da idéia. Não queriam mudança na regra do jogo. Mas, sem a a juda dos mineiros com quem revezavam o poder, tentaram uma revolta militar que chamaram "Revolução Constitucionalista". Os mineiros, que já eram aliados de Getúlio, o apoiaram para sufocar o movimento. Washington Luis errou quando quis impor o seu candidato paulista ao cargo de presidente. Sem Minas, S.Paulo enfraqueceu-se. Mas eu dizia que,meu pai, embora paulista , filho de italianos, foi à luta por Getúlio. Foi até comandante de um pelotão civil. Não foram muitos os combates, a vitória foi mais rápida do que se imaginava, mas Ângelo Suzana foi para a linha de frente e eu ouvi de um dos seus ex-subordinados que ele foi comandado por um bravo. Na verdade, era um grande aventureiro. Gostava de correr perigos. Quando veio para Minas, foi para não morrer. Estava marcado pela "vendetta" . Seduzira uma filha de um importante imigrante italiano. Casou-se com a moça a força mas jurou que não viveria com ela. Pegou outra moça, que ele amava,e fugiu com ela. Sabia que podia ter duas famílias ultrajadas atrás dele. Foi parar em Itajubá-sul de Minas. E amineirou-se totalmente. Nunca mais voltou a S. Paulo. Quando a minha mãe conheceu-o ele havia se mudado para Belo Horizonte, recém-inaugurada capital de Minas, que atraia aventureiros de toda a parte. Terra de cego, quem tem um olho é rei. O meu pai tinha muitos olhos. Parecia um inseto. Um belo inseto sem nenhum escrúpulo. Associou-se a vários tipos de indústrias. Quebrou várias vezes. Processava os sócios acusando-os de armar contra ele. E ganhava. Era um profisional da falência. Abria, com sócios, falia, e saia depois como vitorioso. Se fazia de bobo e fazia os sócios, que queriam tirar dele, as maiores vítimas. A minha mãe tinha quatorze anos quando empregou-se na sua empresa .. Entrou como operária. Tinha uma letra linda e como , naquele tempo, tudo era escrito a mão, o meu pai resolveu aproveitá-la como sua secretária. Ou já estava armando o bote. Ela era muito bonita, um morena sedutora. Menina-moça, virgem, enfim com todos os requisitos para um conquistador. Ele era um Casanova. Já tinha oito filhos com a esposa e, certamente, outros fora do casamento. Sim, ele era casado novamente. Pela lei, um bígamo. Além de tudo, fraudulento. Tudo forjado. A documentação dos filhos e da "esposa" não tinha validade e era criminosa. Eles eram também vítimas . Creio até que o casal também. Como o divórcio não existia e o casamento era indissolúvel, para fugir do preconceito, apelaram para a farsa. Não sei porque, mas estes filhos preocuparam meu pai. Talvez pela fachada. Ele era um homem de família e isto era bom para os negócios.O contrário, péssimo. Porém , sem pensar nas agruras de minha mãe, vinda de uma família de mineiros e baianos, muito tradicionais, ele a levou a aceitar um relacionamento extra-conjugal. A minha mãe era a jóia da família. Com certeza, os seus pais previam um casamento estável e seguro. Quando viram a minha mãe tomar o rumo indesejado, a expulsaram do seu âmbito. Ela,apaixonada, entregou-se ao seu lindo amor. Talvez se considerasse com sorte por ter encontrado um homem tão bonito e engenheiro. Ela , uma pobre moça do interior.Talvez o meu pai tenha de fato gostado dela, mas, moralmente estava preso à outra que largara tudo e fugira com ele. Italiana também, estava alijada da família. E já lhe dera oito filhos e esperava mais um. E com minha mãe foram três. Duas e um. Para a tristeza da minha mãe e do pai também- dizem que ela era linda- uma de minhas irmãs morreu aos três anos de idade.Pneumonia, a doença que ceifava milhões de vidas , especialmente de crianças.A união dos dois estava perigando. A segunda guerra mundial, que se iniciou logo depois que eu nasci, provocou uma crise mundial sem precedentes. Nada se exportava ou importava. O comércio exterior seriamente prejudicado. As indústrias falindo. Com estas, a do meu pai. Ele cortou os gastos extras. Entre estes, nós. Eu, minha mãe e minha irmã de meses de idade. Fomos postos no olho da rua. O castelo que a minha mãe, cuidadosamente construiu com muito amor, ruiu como se fosse de cartas.O meu pai saiu e simplesmente nos apagou de sua vida. Assumiu a mulher que já ia para o décimo primeiro . Fomos morar na rua. A família da minha mãe considerava a mim e minha irmã como "os bastardos". Bem, até os meus irmãos nos viam deste modo. O que eles não sabiam é que eram também. Meu pai nunca teve um filho que não fosse bastardo. Teve mais dois , com outra mulher. Também tinham documentos forjados. Como a verdade sempre vem, descobriu-se, mais tarde, que uns eram bastardos, eu e minha irmã, os outros produto de uma fraude. Mas, não sei porque, os que meu pai mais despresou foram eu e minha irmã. Não se importou com a nossa súbita e total miséria. Abandonados por todos. Não me lembro de nenhum religioso a nos dar apoio. O governo tinha tantos problemas parecidos que não estava disposto a sair procurando mais.Passamos a dormir nos bancos de jardim. Nos bondes. Nos passeios. Nos abrigos. Nas creches. Comíamos o que nos era dado de esmola. Fomos até motivo de uma reportagem no "Estado de Minas", primeira página. A cidade era pequena e todos se conheciam. Nós éramos conhecidos como as belas crianças mendigas. Se tentaram nos seviciar? Certamente que sim. Escapamos e muito tempo depois eu vim a saber porque:eu tenho um espírito protetor. Ele sempre está a meu lado , me guardando dos perigos do mundo. Sou muito ousado. Devo ter puxado ao meu pai em várias coisas. Nesta também. Ele também tinha esta proteção. Todos terão? Talvez sim. Mas o caminho está traçado e não podemos fugir dele. O meu pai, indiferente ao nosso sofrimento, levava a sua vida normalmente, ou seja, era um industrial em busca da recuperação. As mulheres continuaram a cair no seu charme de inveterado sedutor. Tinha até um automóvel, privilégio de muito poucos na época. Nada transparecia nele estar em dificuldades. As mulheres diziam que ele era um "gentleman". Elegante, vestia ternos de casimira inglesa, gravatas de seda, camisas de linho, sapatos de cromo alemão. E eu, minha mãe e minha irmã vivendo da caridade de algumas pessoas generosas que nos davam um prato de comida e pão. Enfrentando o frio e a chuva ao relento. A família de minha mãe era abastada. Eu tive uma tia que tinha várias casas. A minha avó materna e meu avô tinham casas também. Os avós paternos tinham uma casa e um galpão em uma avenida valorizada : a "do Contorno". E nós na rua como três mendigos famintos e maltrapilhos.Ficamos quatro anos dormindo na rua. Pretendo contar a minha história até os presentes dias. Mas, vamos por partes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário