terça-feira, 22 de setembro de 2009

O menino sai da rua

Estenderam no chão um pano de saco de farinha de trigo. Trouxeram um travesseiro de paina e um cobertor barato. O piso era do gabinete do dentista. Eu não notei a diferença dos bancos de bonde ou do jardim. Ou do passeio sob as marquises.Apesar do desconforto, eu tinha o colo magro de minha mãe e suas mãos ossudas passando sobre a minha cabeça.Assim eu dormia e sonhava como qualquer criança.Estava com o estômago cheio, nem sempre eu dormia assim. Muitas vezes a minha mãe encharcava o pão velho no café frio e empurrava pelas bocas minha e de minha irmã. Com fome come-se o que aparece. Eu me acostumei a comer de tudo. Instintivamente , sabia que a próxima refeiçao poderia ser no outro dia. Talvez. Ouvíamos primeiro muitos desaforos das pessoas caridosas e cristãs, antes que a comida forrasse os nossos estômagos. Mas haviam os piores que chingavam e não davam. Então , aquela primeira noite na casa do dentista foi difícil e de muito alívio também.Tinha um teto sobre a cabeça e não sentia medo dos homens maus, como dizia a minha mãe. Nos próximos dias fui tratado com carinho pelas pessoas da casa. Os visinhos, curiosos, vnham me ver. Eu era o menino que se perdeu na Praça da Estação, tão falado no rádio.Encheram-me de perguntas. Era conhecido no bairro. Ali também esmolei. Muitos moradores tinham nos dado um prato de comida. " É o menino mendigo", diziam. "Nem parece, com roupa melhor e lavado". "É até muito bonito. Não dava prá notar". A esposa do dentista , animada, contava aos visinhos porque tinha decidido me amparar por uns dias. Todos falavam que ela era uma pessoa muito generosa.Quando ela disse que fazia o seu papel de cristã as pessoas se levantaram e foram embora ressabiados. " A dona está insinuando que não somos?". Respondia que cada um com a sua consciência. Eu no meu canto, via tudo, inteligente , sentindo que havia conseguido um lar. Teria? Não era bem assim. Isso não era cogitado. A mãe prometeu buscar e ela que não bancasse a espertinha... Não sei , exatamente, o que se passou na cabeça de minha mãe.Pode até ser que ela tinha realmente a vontade de cumprir o combinado. Chegou ao Rio e viu que com uma criança talvez, duas, impossível. Meninas sempre encontram quem aceite. A minha irmã , com cinco anos, era uma criança bonita. E era uma menina. Achou até quem a quisesse como filha adotiva. A minha mãe não quis dá-la. A mim, se alguém quisesse, aceitaria a adoção. Era muito esperto, logo um pouco levado. Não me perdera? Deixei-a preocupada e com complexo de culpa pela sua negligência. Por este motivo, morreu a Vilma, minha irmã mais velha, aos três anos e meio. Adoeceu, demorou a buscar socorro esperando a chegada de meu pai. Quando ele chegou , encontrou a filha morta. Pneumonia . Mata até hoje. Naquele tempo era uma pandemia. Remédios ineficazes. Médicos incompetentes. A medicina de hoje é incomparável e a farmacoquímica também. A minha mãe começou a decair física e psicologicamente a partir daí. Era louca com a Vilma. O meu pai também. Ele nunca a perdoou pela negligência.
Mas estamos agora na casa do dentista. Os dias passam e a minha mãe, finalmente, apareceu. Veio e, como veio, se foi. Não sei o que conversaram mas, não agradou aos meus abrigadores. D. Zezé sumiu. Passou-se o tempo e...nada. O pessoal da casa ficou indignado. "Ela deu-nos um golpe de mestre". E começaram a me pressionar. Já não era mais o pobrezinho. Era o filho daquela vagabunda. Tentaram, como já contei, me entregar ao estado. Não conseguiram. Passaram então a me impor um regime draconiano. Eu valia, segundo eles, menos que o cão da casa.Logo, o cão comeria primeiro que eu. Seria então o último a comer. Se eu me queixava da comida que me era destinada eles diziam:" na sopa dos pobres comia melhor?" Como eu comia o que sobrava de todos, incluindo o cão, comia mal. Passaram a castigar e bater. Tinha agora 8 anos e por qualquer motivo e até sem, apanhava. Não podia me assentar nas cadeiras e poltronas . Não podia olhar para eles quando lhes falava. Era falta de respeito. Se eu me esquecia, couro. Todos se julgavam no direito de bater, até as serviçais. Que falta de solidariedade. Até estas, também frequentemente humilhadas, achavam que eu lhes era inferior. Quando a minha mãe voltou, a Geni ,uma negra que foi criada na casa para ser criada,tomou as dores dos seus donos e brigou ásperamente com D. Zezé. A minha mãe sempre foi de briga. Não vi, mas imagino que as duas se pegaram e a Geni levou a pior. Sobreveio um ódio compulsivo à minha humilde e infantil pessoa. Totalmente indefeso.Jogado às feras como os cristãos no Coliseu. E estas atacaram como eram. Eu chorava o dia inteiro. A todo momento, pancada.Havia um jovem filho do dono da casa. Era o mais novo de dois. Era sádico. Sentia um prazer enorme em me torturar. Punha-me de joelhos sobre grãos de milho coom os braços abertos. Se gemesse, implorasse, ou sentisse os braços cansados, pancada. Quase sempre na cabeça, com punhos fechados.Eu estava apavorado. Não entendia o porque de tanto sofrimento. O dentista , de ideologia fascista, via-me como um inferior que tinha que ser tratado como um animal a ser domesticado. Por qualquer motivo, surra. Usava o que tinha à mão. Correia, chinelo, borracha, páu, as próprias mãos se não encontrasse nada na hora da raiva. E eu gritava. Gritava muito de dor e pavor. Urinava-me e defecava-me todo."Que porcaria!", e batiam ainda mais. Adoravam bater naquela criança abandonada. Diziam que eu tinha que pagar , com trabalho, o que comia. Fazia de tudo na casa. Limpava, capinava, descia a rua íngreme para buscar alimentos para a casa.E subia. Descia e subia. Quantas vezes? E o relógio era marcado. Tinha alguns minutos para ir e voltar, senão couro.Os filhos do dentista , além de sádicos, gostavam de se divertir. Quando chegavam da rua, viam -me , deitado no chão da casa , dormindo com a boca aberta. Tiveram uma idéia muito engraçada. Foram ao fogão, acenderam-no naquela madrugada, fizeram um mingáu de fubá sem açucar e o despejaram pela minha boca adentro. Acordei sem poder nem gritar. Sufocado pelo mingáu eu lutava pela vida. Eles corrreram rindo para os seus quartos. Enquanto eu me debatia eles me avisaram: " se contar, apanha". Eu só queria viver naquela hora. Escapei da morte. Mas, não do pavor. Daí para frente vieram os pesadelos e o medo de dormir. Eu só tinha 8 anos! O filho mais novo, João, levou-me a força para um quarto de despejo da casa. Pretendia me seviciar. Fui obrigado a praticar atos libidinosos com o pedófilo, mas, quando pretendia consumar o ato, tive a sorte de uma das serviçais nos encontrar em flagrante delito. Ele deve ter feito sérias ameças à moça que nada contou aos pais dele. Este João, adorava me queimar com pontas de cigarro e fósforo. " Já viu o fósforo queimar duas vezes?" . Acendia o fósforo e dizia:"uma". Apagava-o em meu braço e dizia:'duas". Quando eu tinha 10 anos ele já não estava mais em casa. Foi ser cadete em Barbacena. Era já piloto de Aeroclube. Nós estávamos em Araçai.O dentista montou lá um consultório.Reconheço que, em Araçai, fui bem tratado. Talvez porque lá estavam só eu, uma serviçal, o dentista e sua esposa. Senti-me como se eu fosse filho deles. Cheguei a ser feliz. Até que numa tarde um teco-teco surgiu no horizonte. Em vôo rasante passou pela cidade. Pressenti o perigo. Vi que era o João. Estava tão bom ali sem ele!Por que tinha que aparecer? E se aquele avião caísse? Tudo iria ficar ruim prá mim de novo! Saí pela rua gritando: "Vai embora! Vai embora!" O tecoteco deu mais dois rasantes.As ruas cheias de gente admirando a proeza. E subiu, subiu, até ficar pequenino lá no céu.Vimos que o motor parou. E o avião veio caindo, caindo , em parafuso. A uma distância do solo, viu-se que tentavam acionar o motor, sem êxito. O avião caiu mais,bateu com uma asa na caixa-dágua de uma casa, e se espatifou contra o muro. Corri para lá. Vi uma fumaça negra subindo e um fogaréu. Senti, ainda distante, o cheiro terrivel de carne humana queimada.Vi , primeiro o João. No avião, se queimando, o corpo de seu colega de farda, Wallace. João estava sentado e dava para ver o seu corpo todo queimado. Fedia também a carne queimada. Um cheiro que demorou a sair das minhas narinas. Levaram-no para um cômodo de uma casa próxima e deitaram-no sobre folhas de bananeiras. Alguém já tinha ido buscar socorro e avisar o Aeroclube. Iriam mandar outro avião buscá-lo. Pousaria , como João tinha feito, em Curvelo. Até Araçai foram de carro ambulância. Vi João,que gostava de me queimar, todo queimado.Depois eu conto mais.Agora eu paro para respirar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário