sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A repressão

Quando o golpe militar se efetivou, caiu sobre a população brasileira, em especial a mineira, um sentimento de perda irreparável. Nós , mineiros, sofremos um pouco mais. Afinal, para o mundo, foi com nosso apoio que os militares tomaram o poder. Isto não foi, exatamente, verdade. Admito que os setores mais conservadores religiosdos e políticos saudaram a "revolução redentora" que iria acabar com a "ameaça comunista de tomada do poder". Os mais esclarecidos, mesmo entre estes,sabiam muito bem que isto era uma balela. O presidente Jango era cria do Getúlio. Este pode ter sido um populista, nunca um comunista . Teria escolhido Jango para ser o seu sucessor no estabelecimento da IDEOLOGIA TRABALHISTA. Tinha muito a ver com o justicialismo de Juan Domingo Peron. Os dois, muito a ver com Benito Mussolini. Até a CLT , dizem, é uma cópia da "Carta Del Lavoro" de inspiração fascista. Como poderia o latifundiário, abastado, querer implantar um sistema que iria contra os seus interesses particulares? O comunismo é revolucionário. O trabalhismo é reformista. Se alguém dissesse, na União Soviética de Stalin, que era um reformista... Teria que se haver com o Béria. Talvez este mandasse executá-lo bem devagarinho...Os esclarecidos, mesmo golpistas, sabiam disto. Mas, se o motivo agradava, para que mudá-lo? Na realidade pretendeu-se um governo com a disciplina dos quartéis. Porém, a política exige talento. A troculência é inimiga da política. Todos os regimes ditatoriais se deram muito mal. Se ainda existem, breve não existirão. Não têm futuro. A democracia socialista de Marx abomina a ditadura. Lenin a usou porque a Rússia estava destruida pelas guerras, material e moralmente. Para não sobrevir o caos, Lenin implantou um plano ecoômico, o NEP, e a ditadura do proletariado com data marcada para acabar. Seria em 1924, ou seja, teria cinco anos de duração.Depois, como ele bradou:todo o poder aos sovietes!O povo compunha os sovietes (comunas). O comunismo é o sistema mais democrático que existe. Acaba com todas as formas de opressão e entrega o poder para que o povo o exerça em toda a sua plenitude. É uma utopia? Talvez seja. Mas, acredito que, num futuro não muito distante não restará ao homem outra alternativa.Quanto ao ateismo marxista, eu diria que o tempo dele era bem diferente do de hoje. Havia uma igreja que dominava pelo terror. Era difícil crer na boa fé dos crentes. É aquela história: ou você está comigo ou está contra mim. Assim que se pensava. Hoje, tudo mudou, graças a Deus. Vejo muitas coincidências na pregação cristã e comunista. Tirando o misticismo são quase idênticos. Ou tirando o ateismo.
Assim ,comecei a pensar, quando a propaganda dos golpistas justicava a ditadura como necessária para destruir os comunistas. Como eu pertencia à JEC, JOC e frequentava a JUC, eu tinha noções básicas sobre o marxismo. Discutíamos as coincidências. E as divergências também. Não aderira ao partidão até então. Mas, a repressão estúpida e cruel me fez mergulhar nos livros e estudar, mais profundamente, esta ideologia. Ouvira oradores tidos como comunistas. Francisco Julião, defensor da reforma agrária, foi um que eu ouvi. Falava com uma técnica extraordinária. Ficávamos a ouví-lo por horas sem cançar. Antes do golpe eu ia ouvir também os mais ligados à religião. Ouvi o fascista Plinio Salgado. Sai tonto de dúvidas. Se o fascismo era tão execrável, como podia um homem tão inteligente e culto fazer parte dele?Lembro-me que ele falou sobre a história do Brasil. Durante cinco horas! Não percebi o passar das horas. Foi uma aula das mais impressionantes que já assisti. Noutra oportunidade fui ver o Santiago Dantas tido como de esquerda. Outro show. Que inteligência! Prestes , baixinho, não me agradou pela figura que eu julgava de um homem alto e forte. Mas, quando começava a discursar, crescia e parecia um gigante!Compreendi porque homens como Eduardo Gomes e Juarez Távora, além de outros iguais, seguiram-no como ao "cavaleiro da esperança" na famosa Coluna Prestes. Hoje não se ouve oradores como naquele tempo. Começava nas salas de aula. Os nossos professores eram artistas da palavra.Depois veio o silêncio das ditaduras.
Mas , esta minha admiração pelos oradores e o meu interesse em conhecer mais o marxismo custou-me um ótimo emprego.Trabalhava como vendedor na Cia. de Cigarros Souza Cruz e, conforme já contei, fui dispensado por causa de uma denúncia que poderia ter me custado também a vida. Quem escreveu a carta? A minha própria mãe. Eu já contei porque. Ela não permitiu que eu tivesse acesso aos telegramas que o Bco. do Brasil enviou me chamando para tomar posse como funcionário concursado. Por que me odiava tanto? Certa vez ela me disse que não sabia porque. Vários colegas da Souza Cruz foram presos, especialmente os do Sindicato dos Fumageiros.Eu também era sindicalizado. Não tinha cargo na diretoria. Por isto, escapei.
Sai de lá e fui à luta. Vendi vários produtos como autônomo. É aí que fui trabalhar em laboratório farmacêutico. Passei por uns dois até que fui chamado, depois de exaustivos testes, para trabalhar na PFIZER. Fiquei lá doze anos. Um bom tempo. Depois eu conto.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O golpe

Lembro-me que estava trabalhando, em hora de almoço, quando, voltando da pensão em que eu comia, vi que , na rua Tamoios, em BH, passavam caminhões do Exército cheios de soldados. Estes pareciam atônitos. Vi que estavam todos em silêncio e dava para perceber uma enorme preocupação. Olhei para as bancas de jornais e não vi nenhuma edição extra. As pessoas paravam vendo o desfile sombrio sem entender. Mas os soldados estavam equipados para a guerra. Havia um clima de golpe e só não sabíamos se Minas estaria a favor ou contra. O Governador Magalhães Pinto, poucos dias antes, declarara, ao lado de Jango, que Minas, berço da liberdade, seria contra qualquer tentativa de implantação de uma ditadura fosse de esquerda ou direita. Acreditamos porque a ditadura não serviria aos interesses dele, candidatíssimo à presidência em 1965. Só se o ditador fosse ele. Magalhães ditador? Não dava para crer. Porém, quando eu vi os soldados tive um pressentimento ruim. Se o movimento golpista houvesse partido do Rio de Janeiro ou São Paulo seria esperado. Mas, de Minas? O Estado que sempre se postou contra a tirania não poderia ser o artífice de uma. Sempre nos reuníamos para articular, pacíficamente, o apoio às reformas de base. Fazíamos comícios relâmpagos, trepados em caixas ou engradados, sem microfone, para divulgar as novas idéias. Nunca pregamos um revolução sangrenta. Sentíamo-nos protegidos pelo acesso ao poder das forças civis mais representativas do povo. As forças armadas, que víamos como heróis da luta contra o eixo fascista , não iriam transformar o Brasil numa ditadudura de direita.Se a ameaça se concretizasse , estávamos dispostos a morrer pela liberdade. Os generais Mourão Filho e Guedes foram hábeis ou precipitados na conspiração. Pegaram todos de surpresa até mesmo os seus aliados. Lembro-me do Governador Lacerda , cercado no Palácio do Governo do Rio, vociferando contra o que ele chamava de irresponsabilidade criminosa. No início, parecia que Jango iria sufocar o movimento rapidamente. O segundo exército estava indeciso, o terceiro parecia enfileirar-se , partindo do Rio Grande do Sul, ao lado do presidente. Brizolla, que havia , no comando da Rede da Legalidade, garantido a posse do cunhado, em 1964 era apenas um deputado federal. Candidato certo a presidente em 1965. Poderia estar tramando um golpe de esquerda? É verdade que ele e Magalhães teriam que vencer JK, o favorito absoluto. Mas, arriscar um golpe? Não acreditava. Pois foi o mineiro que conspirou e liderou o golpe. Como o bom-bocado não é para quem o faz e sim para quem o come, Magalhães ficou a ver navios. Quanto muito, lhe deram um Ministério sem força política ou militar. Um prêmio de consolação. Castelo Branco nos pareceu um personagem que surgiu das sombras e terminou nas trevas do anonimato. Parecia apenas o instrumento de um grupo que o usava para atingir objetivos ainda mais funestos. Serviu ao Brasil neste particular macabro. Não permitiu que a extrema direita chegasse ao poder. Circulavam listas de políticos e outras pessoas ligadas ao governo deposto, direta ou indiretamente , que seriam sumariamente executadas.. O expurgo atingiria a todos que preocupassem ao novo sistema, entre estes, estou certo , eu estaria. Não temi pela minha pessoa. Era solteiro. Nada tinha a perder. Estava pronto para entrar num grupo de resistência armada contra os golpistas. Com o passar do tempo, e com a fuga dos nossos líderes para o exterior, percebi que não teríamos sucesso. E que, também, favoreceríamos o recrudescimento da ditadura que se instalava. Passamos a pensar na possibilidade de uma resistência pacífica. Esta duraria anos. Eles não entregariam o poder facilmente. Tinham as armas e o apoio dos EUA. Estes, depois do susto que Fidel lhes deu com os foguetes atômicos, não estavam dispostos a contemporizar. Iam jogar sujo. Mandaram para cá vários especilistas da CIA em repressão científica, ou seja, tortura sofisticada. Houve um destes que serviu nas delegacias políticas de Minas. Dizem que foi ele que criou a maquininha elétrica. Fios descampados era ligados aos bicos dos seios das presas e ao tésticulos dos presos. Rodava-se uma manivelinha e o choque elétrico era insuportável. Quem passava perto destas delegacias ouvia o grito desesperado dos torturados. Eu fiz parte da JEC, JOC e ajudei à JUC. Eram grupos católicos , liderados pela nova igreja que surgiu após as enciclicas do Papa João XXIII. Os dominicanos eram os mais ativistas.O que queriam ? O comunismo ateu? Não. Queriam as reformas de base: bancária, agrária, estudantil, social, enfim as necessárias para um novo Brasil.Os cléricos conservadores os odiavam. Vários, denunciados por estes, foram presos e torturados. Se não houvesse a Anistia saberíamos hoje de coisas horríveis. Tem que ser irrestrita, disseram os próprios companheiros de esquerda. Eu sempre fui contra. Nada tenho para esconder. Mas, muitos que têm ficaram isentos da justa punição. Muitos amigos sumiram. Nunca mais os vi. É verdade que alguns foram para o exílio e não quiseram voltar. Porém, muitos não voltariam, mesmo que quisessem. Já não pertenciam ao mundo dos vivos. Morreram no exílio chorarando de saudade de sua pátria. Quantos foram parar no fundo do mar? Ou dos rios ?. Ou a sete palmos abaixo da terra? Eu, por estar com idade avançada, jamais saberei. Mas, os meus netos saberão de tudo que houve nos porões da ditadura. A nossa luta pacífica contra ela foi incansável. Não perdemos um só minuto . Durante o tempo todo, em 22 anos , resistimos. Usamos todosos recursos de uma luta sem armas. A nossa era a palavra. Tal como Ghandi, na India, vencemos. As multidões foram para as ruas em protesto. As forças de repressão nada puderam fazer. Quantas vezes eu estive com uma metralhadora apontada para o meu peito? O soldado me olhava fixamente. Esperava só o grito: fogo! E eu não estaria aqui contando esta história. Mas os títeres teriam caido mais depressa. A um povo decidido não existe a força do canhão. A história da humanidade mostra isto em várias oportunidades. Lembro-me de, certa vez, em uma de nossas passeatas, chegamos à porta do palácio da Liberdade. Nome supimpa! Os soldados aguardavam a ordem e nós começamos a cantar o hino nacional. Haveriam umas 50 mil pessoas em silêncio. Muitos , entre estes eu, com uma vela acesa iluminando as trevas da ditadura. Quando irrompeu o Hino os soldados ficaram perplexos. Aprenderam que, diante do Hino tinha que se perfilar. O povo perfilou-se. Alguns soldados fizeram o mesmo. Outros ficaram olhando ansiosos para o oficial.Todo mundo chorando. Soldados também. O Comando mandou que os soldados voltassem aos quartéis. Nós nos retiramos cantando outros hinos. Entre estes, a Internacional Socialista. Dá prá imaginar, com toda aquela carga emocional, um coro de 50 mil vozes? Foi maravilhoso.

sábado, 3 de outubro de 2009

Mudança de rumo

Fui visitar a minha mãe porque ela me falou que havia se mudado. Mudou sim: do muito ruim para o pior ainda. Deus atuou para evitar que a minha irmã, uma moça bonita, ainda não estivesse no meretrício. Os visinhos de minha mãe eram os piores possíveis. Não havia higiene nem escrúpulo. Os homens passavam em frente do "quarto" cortinado vestidos só de cuecas samba-canção. As mulheres de calcinha transparente e sutien idem. O fedor de urina, fezes, outras coisas inomináveis, impestavam o ar. E eu dava dinheiro para uma situação bem melhor.A minha mãe certamente o gastava com besteiras pois, a sua mente doente, não via valor em morar com dignidadde. Não me restava outra decisão.Teria que deixar a Renascença para viver com elas. Levá-las para lá era impensável. Já havíamos morado lá, num quarto de porão , quando eu tinha 5 anos. Não queria reviver aqueles tempos. As pessoas não esquecem. Por maldade ou ingenuidade podem se lembrar inconvenientemente. Resolvi alugar uma casa no bairro Pompéia e levá-las comigo para lá. A minha mãe não gostou da idéia.Preferia morar num cortiço, no centro, do que numa casa confortável no bairro. Com o dinheiro que o meu pai foi obrigado a depositar na justiça, ela comprou um barraco, humilde mas, habitável, no bairro Saudade, próximo à casa que eu estava alugando. Eu não queria morar no barraco. A minha mãe também. Por razões diferentes. O barracão exigia reformas. Não havia dinheiro para isto. Foi alugado por uma micharia, só para não ficar desabitado.E fomos morar no bairro Barro Preto. É um bairro central. Tem todos os requisitos necessários para um morador. Mas, sendo um bairro de gente rica, o que iria fazer lá uma trinca de pobretões?Ficamos deslocados. Mas, como há males que vem para bem, consegui um emprego na Cia. de Cigarros Souza Cruz para ganhar o dobro do que ganhava na Singer.Esta empresa ficava atrás da nossa morada.Como funcionário de uma multinacional passei a ser visto com simpatia pelos nossos visinhos. Não a minha mãe. Ela continuava com o seu recalque contra tudo e todos.Brigava com os visinhos injustamente. Eu, constatando isto, negava-lhe apoio nas suas desavenças. Ela me odiou por isto. Tudo fez para me desmoralizar até perante os meus superiores no emprego. Escrevia cartas anônimas e assinadas. Acusava-me de coisas horríveis. Fiz o concurso do Bco. do Brasil. Estudei feito um louco. Durante dias não tive lazer. Só estudava. Fiz as provas e fui sendo aprovado. Passei por todas as eliminatórias.Fiquei esperando , ansioso, o resultado.Que não vi.Esta pasagem é tão sórdida que abrirei um capítulo só para contá-la. Se passasse, eu planejava sair de casa. Iria seguir a minha vida sem esquecer a minha mãe e irmã. Pagaria tudo que elas gastassem para sobreviver mas, distante delas. Só soube das cartas quando o meu chefe me chamou e, aborrecido, perguntou: você tem certeza que esta senhora é sua mãe?
Percebi que ela tinha se superado na maldade. Perguntei qual era o conteúdo da carta e ele se recusou a dizer. "É melhor que você não saiba". Mas, nada mudou para pior. Muito pelo contrário. Passei a ser visto com mais simpatia e respeito. Porém, politicamente, eu era a favor das reformas de base que o Presidente Jango anunciava. Senti que um golpe estava sendo armado e que talvez haveria luta armada. Em 1961, após a renúncia do Jãnio, em quem havia votado para presidente , aderi o movimento legalista e apoei o Governador Brizola. Fui às ruas com um grupo de amigos. Juntei-me ao povo em protesto contra o golpe. Jango tomou posse como presidente parlamentarista. Apoei depois o retorno do presidencialismo. As reformas são vistas hoje como inadiáveis.Naquele tempo era papo de comunista. Eu nem sabia o que é isto. Estudei o marxismo e simpatizei com a doutrina. Entrei para o Sindicato dos Fumageiros. Era quase uma exigência legal. Quem quisesse aumento de salários e tratamento dígno no local de trabalho tinha que ser sindicalista. Ou aceitar passivamente a injustiça. Nunca aceitei nada passivamente. Quando veio o golpe militar eu estava muito bem na Companhia. Estava sendo preparado para uma promoção muito boa. Não levavam a sério o fato de eu ser sindicalizado. Todos os empregados nos EUA o eram.Os patrões até gostavam de ter um sindicato de empregados para negociar. No sindicato eu era estimado também. Os operários me viam com muita simpatia. Como eu era um moderado isto era bem visto até. Sempre fui um comunista de pés no chão. Contrário a qualquer aventura "porralouca". Luta armada só em último caso. Em 1961 era quase um último caso. Em 1964 parecia que não era. E era. Veio o golpe. Muitos companheiros presos. Fiquei cabreiro. Quando chegará a minha hora? E minha situação piorou muito depois que a minha própria mãe escreveu uma carta me denunciando como comunista e janguista. Fui chamado pela gerência. Disseram-me que sabiam das minhas simpatias mas, tinham certeza de que eu não era um subversivo. Tinha idéias e tão somente. Concordei. Disseram-me que, diante da carta que receberam, haviam autoridades do novo governo querendo a minha cabeça. Mas, resolveriam tudo. Bastava que eu escrevesse uma carta desmetindo .Naquela época alguns fizeram isto. As suas cartas foram usadas para justificar o recrudescimento do regime. Eu perderia tudo, mas não escreveria. Os meus chefes, lamentando muito, me despediram. Sai e para que os compromissos da casa ficassem inabalados , fui à luta e comecei a ser viajante vendedor autônomo. Depois , trabalhei em laboratórios, até entrar para um grande: PFIZER. Ganharia o dobro do que ganhava na Souza Cruz. Aí fiquei doze anos. Até que fosse aposentado por invalidez. Mas, esta é uma outra história.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

As barracas da Igreja

Quem morou na Renascença entre 1955 a 1962, lembra, com certeza, das barracas da igreja Sto. Afonso. Primeiro foram as "Baianas" e "Holandezas". Na primeira , uma baiana abria as suas saias e em baixo, um palco com regional e cantores amadores, às vezes até profissionais,mesas e cadeiras onde as pessoas se sentavam para colaborar com as obras sociais da igreja consumindo salgados, doces, refrigerantes e bebidas alcoólicas. Na outra, disputando com a rival, havia um moinho cujas hélices giravam sem parar. Sob este também um palco , mesas, caldeiras, enfim tudo o que a outra tinha.Era uma disputa acirrada. Eu, matreiro, colaborava com as duas. Coloquei-me como neutro.Eu estava entre os que cantavam . Sempre adorei cantar. Música bonita de qualquer origem. Só tem que ser bonita. As pessoas que ficavam fora das barracas faziam o "footing". Era a paquera. Eu preferia ser fiel às minhas amigas. Ser amigo era muito mais interessante. Não me atava a ninguém . E me ligava a todas. Conheci neste tempo Clara Nunes.Também era uma grande amiga. Linda. Doce. Meiga. Gentil. Tinha todas as qualidades que um homem procura. Mas, ela tinha outros planos. Lembro-me que namorava o Tonho, goleiro do Cruzeiro, muito famoso na época. Era bonitão, alto, forte.E muito bem educado. Não se incomodava com a amizade que eu e a Clara sentíamos um pelo outro. Eu tinha ciumes. Mas, nada poderia exigir. Eu mesmo coloquei estas condições para todas. Ela era muito admirada e eu também. Não sei como o Tonho consentia na nossa amizade. Talvez porque tivesse outros planos de carreira também. E eu e Clara mexíamos com os comentários de todos os conhecidos e desconhecidos também. Passeávamos de mãos dadas .Sentávamos na escada da igreja, quando sem ofício, e ali ficávamos horas a conversar. Havia mais entre nós. Mas, não deixávamos transparecer ou é isto que pensávamos. Mas, a nossa amizade durou até o início da carreira dela como cantora. Ela foi envolvida e não mais a vi pessoalmente. Ouvia-a pelo rádio, mais tarde pela televisão. Certa vez, veio a BH com o Paulo Gracindo. Eu estava trabalhando muito. Quando o espetáculo começava eu estava largando o serviço. Cansado , ia para casa. Eu queria vê-la. A faina não deixava. Ficaram uma semana no Teatro Francisco Nunes. O melhor de BH então. Foram embora e eu não a vi. Na verdade, quando ela se foi para a carreira, sentí-me terrivelmente abandonado. Dividia a Clara com o Tonho, mas, a carreira era muito mais forte do que eu. Ainda bem. Senão, o Brasil teria perdido uma das suas maiores cantoras.Soube depois, pelo Dirceu, que era um apaixonado fan dela desde os nossos tempos de Renascença, que foi procurá-la no Hotel e foi muito bem recebido, que a primeira pergunta que fez foi: Dirceu, por onde anda o Paulo?
E depois pediu a ele para dizer-me que não havia me esquecido e que lamentava eu não ter ido vê-la no Teatro. Fiquei decepcionado comigo mesmo. Nunca me perdoei por ter feito isto, especialmente depois que ela morreu. O Jadir, nosso maestro no Coral da Igreja Santo Afonso, muito amigo até hoje, sempre em contato com ela por ser músico profissional, sempre me trazia notícias dela e suas recomendações. Foi um duro golpe para mim a sua morte. Senti como se fosse alguém de minha família.Até hoje sinto.
Quando ela segiu para a sua carreira, resolvi namorar mesmo. Tive duas Lenitas. A primeira de Juiz de Fora e a segunda de Serro.Namorei outras, mas, estas ficaram na memória. Eu não fui capaz de amá-las com a mesma intensidade que me amaram.Assustei-me com tanto amor. Era um meninão de 19 anos.O casamento me assustava. Mesmo porque eu era arrimo de família.Já estava cuidando da mãe e da irmã. Diziam-me que a minha mãe, que me abandonara com cinco anos na casa de extranhos, não merecia tamanho esforço. Mas, a idéia de vê-las mendigando ou minha irmã prostituindo para não morrer de fome me apavorava.E a minha mãe não fazia cerimônia. Ia atrás de mim sempre que precisava. Ficava pelas esquinas me esperando. Não descançava enquanto eu não lhe desse o que queria:o meu dinheiro., E eu dava. Dava quase tudo que me sobrava. Ela nunca mais passou fome nem dormiu ao relento. Foi duríssima comigo. Parecia me odiar. Talvez julgasse que eu era seu inimigo. Não acreditava que, depois do que me fez, eu pudesse lhe querer bem. Eu nunca a odiei. Nem quando eu sofria na mão dos meus carrascos. Ela me fez passar também por maus momentos.Considero-os piores por terem sido protagonizados por minha própria mãe. Ela ficou neurótica com o sofrimento. Não conseguia amar a mais ninguém. Julgava que todos a odiavam da mesma forma. Especialmente eu. Não era verdade. Nunca a amei. Nunca a odiei.Por mais odiosa que fosse. Eu tinha muita pena dela.Mas, esta é uma outra história. Nem sei se vale apena contar. É muito doloroso para mim.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Os meus vinte anos

Quando voltava de Inconfidentes, triste pela doença e pelo atrito que eu tive com o diretor interino que eu sabia que ia ter consequências, via-me de volta à casa dos meus horrores. Não tinha para onde ir. E eu já me acostumara aos maus tratos. Mas, ficara, pela primeira vez , três anos distante. Esperimentara uma nova vida. Apesar de tudo, na Escola eu tinha cama com lençol, travesseiro , cobertor (2) e que eram substituidos por outros limpos. Tinha uma boa comida com sobremesa. Comia em pratos iguais aos de todos os colegas. Tudo era tão igual que até cansava. Não percebi privilégios. Nunca apanhei na escola. Se levei pancada, dei também. E foram de colegas. Era respeitado. Enfim, conheci uma família que eu nunca tive. Se pudesse, eu só voltaria para casa depois de concluido o curso. Para a minha casa.A Escola tinha o seus problemas mas era, indubitavelmente, o melhor tratamento que eu recebera na minha vida até então.
Fui , no trem a óleo que se movia rapidamente, lembrando das paradas de 7 de setembro. Eu era o Porta- Bandeira. Era o mais alto da Escola. A bandeira do Brasil , nas minhas mãos , se destacava de todos. E colocaram-me à frente de todos que iam desfilar. Eu teria que marchar direito, não de medo de ir preso pro quartel, porque todos , até o Tiro de Guerra, seguiriam a minha marcação. E eu levei isto muito à sério. Resultado: muitos aplausos do povo de Ouro Fino que se aglomerara no percurso para nos ver passar. Como escolheram a mim para abrir, a Escola vinha logo depois de mim. Os aplausos pareciam uma sonata de Beethoven aos meus ouvidos. O menino que valia menos que o cão da casa agora recebia os aplausos gerais. Era destaque quem sempre foi inferior. As moças sorriam e airavam beijos. Quase tropecei nas pernas. O coração pulava de alegria. Findo o desfile, Marina se antecipou à Cely e fomos os dois a namorar à moda antiga. Não ousei tocar a sua mão em público. Nem ela permitiu. Mas, lembro-me, estava linda! Os colegas da fanfarra pasaram tocando suas baterias e me olhando com inveja e espanto. Eu com o uniforme de gala e de brim, e ela super-elegante. Fiquei ainda mais orgulhoso de mim mesmo.
E o trem seguia o seu curso. Eu sabia que era a minha última viagem de volta da Escola. Não chorei porque nunca mais choraria. Havia esgotado o meu estoque de lágrimas quando criança.Virei homem muito cedo e homem não chora.
Preparava-me para ir para Barbacena. Increvi-me, pelo correio , para as provas de admissão na Escola Agrotécnica . Seriam provas eliminatórias, ou seja, o mata-mata escolar. Se perdesse uma estaria fora. As matérias eram: Matemática, Português, Geografia em História, Agricultura, Veterinária, Conhecimentos Gerais, Ciências. Estas duas últimas não reprovavam mas, serviam para a média geral. Teríamos que alcançar nota 7 para classificação. Eu , depois de ser aprovado em todas, não passei de 6,7 no geral. Estava já com um contrato preparado para jogar basquete no Olimpic. Além do material completo, ainda teria uma ajuda de custo.Os dirigentes do clube acompanharam os meus resutados e queriam, receiosos de que o time rival me pegasse, que eu assinasse o contrato o quanto antes. Eu pedi para esperar o resultado final. Quando veio, ninguém acreditou. Recomendaram que eu fosse aos examinadores. Fui. E eles me disseram que não poderiam alterar a nota que já estava em poder da diretoria. Mas, eles dissram: como isto aconteceu? Suas notas foram tão boas. Chegamos a comentar , entre os professores sobre o seu resultado. Pedí-lhes um ponto mais. Seria suficiente para cobrir os 0,3 que me faltaram. Não aceitaram . Eu estava reprovado. E agora? Vou ter que voltar para a casa do dentista? Sim, não havia outra alternativa. Talvez não me aceitem. Vão ter que aceitar. Só tinha 17 anos. Era menor. Eles eram responsáveis por mim. Eu tive medo de sair. A lembrança dos tempos de morador de rua me apavoravam A única pessoa que saudou a minha volta foi a Mãe Quita. Eu escrevia para ela, mandando a carta para a casa do visinho, porque eu não tinha para quem escrever. A minha mãe estava de volta, já haviam uns dois anos, mas ela era uma incógnita para mim. Esqueceu-me na casa de estranhos. Por que voltava depois de dez anos de ausência? O que ela queria?
Eu não entendia. Porém, readmitido no meu antigo quarto, nas mesmas condições que vivia, ainda lá estava o Geraldo, dormindo no mesmo colchão de palha. Mas, eu estava mudado. Procurei trabalho e , por atendimento ao pedido feito pela Mãe Quita,fui readmitido na fábrica de tecidos, desta vez, como contabilista. Nada sabia sobre isto. Peguei uns livros sobre esta profissão. Estudei-os avidamente. Dependia disto a minha coninuidade no emprego. Havia sido avisado que seria por três meses em substituição a um funcionário que adoeceu.Quando este voltasse eu sairia. Havia muito trabalho contábil para ser atualizado. Mergulhei no trabalho. Só sai depois de quase três anos. Fui convidado a trabalhar na Singer.A minha mãe já me pesava muito no orçamento. Na fábrica havia um empório.O gerente, meu amigo e visinho, chamou-me e alertou-me que a minha mãe estava comprando produtos caros. Ele estava com pena pelo que ia me cobrar. Eu não podia deixar a minha mãe sem comer. Mas, ela abusava.Pegava de tudo para ela e mimha irmã. Eu não via como negar. E o pessoal da casa em que eu morava pegava também na minha conta. No fim do mês, quase não tinha salário. E eu ganhava cerca de dois salários mínimos que não eram os de hoje. Valiam muito mais. Fiquei chateado com a exploração. Aceitei o emprego da Singer. Iam me pagar 3 salários mínimos para a função de contador prático.E lá não tinha empório. Continuei ajudando-as mais comedidamente. Em casa também. Mas, a minha mãe morava em lugares horríveis e mal afamados. Eu morria de vergonha por causa disto. Estava chegando aos meus vinte anos. A Renascença me tratava com carinho.Sabiam da minha história. Depois conto mais.