quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A puberdade

É uma fase difícil para quem está amparado e amado pela família, imaginem o que foi para mim. Tinha ordem do dentista para estar em casa antes das nove. Eu e o outro que veio de Araçai para cohabitar comigo, ou seja, morar no mesmo quarto (?) , éramos tratados de formas diferentes. Ele era estimado. Pelo menos não era maltratado. Não tinha regalias. Sentia as mesmas dificuldades de dormir num lugar como aquele.Como o quarto visinho era cheio de quinquilharias, era um viveiro de baratas, moscas, ratos, lagartixas, pulgas, percevejos, formigas, pernilongos. Lá se estabeleceram , formaram família e se assentaram permanentemente.. D. Quita, a dona, não abria mão de seu antiquário. Até coisas minhas ela guardava, é justo reconhecer. Tinha umbigos dos filhos. Suas roupas em várias fases de suas idades.Brinquedo, fraldas, bicos, mamadeiras, retratos, berços, caminhas, roupas de todas as idades, ela guardava até as dela quando criança e de irmãos. Reecordações dos falecidos pais e parentes próximos, enfim , um pequeno museu familiar. Inimaginável nos tirar daquele cortiço e , numa troca, irmos para o quarto taqueado e forrado. As antiguidades valiam muitomais do que nós. Mas o Geraldo tinha algumas regalias que eu não tinha. Não comia ,como eu, em latas de marmelada, podia comer em prato. Nem era o último a comer. Não era obrigado a lavar panelas e talheres e todos os pratos do almoço e do jantar. Não era obrigado a lavar o chiqueiro , dar comida para o porco, capinar o jardim e descer , sempre que necessário uma rua íngreme para ir ao armazém ou `a padaria. Nunca o vi apanhando. O inferior da casa continuava sendo eu. Diziam: primeiro os graúdos, depois os miudos. Eu, o mais miudo de todos. As pancadas continuavam. Até que chegou um dia que eu disse: basta! Quando o dentista brandiu o chicote, já sem chorar, nos meus doze anos, eu lhe disse: bate,maldito! Covarde, aproveita que eu sou um menino. Breve não serei mais. Bate, covarde!
O dentista abaixou o chicote sem acreditar no que estava ouvindo. Eu só chorava. Nunca reagira. Os meus gritos mexeram com os brios dele. A partir deste momento, cessaram as surras. Iniciou-se um novo tempo de despreso e antipatia. Não falavam comigo. Nem exigiam que eu fisesse os trabalhos da casa. Já não me mandavam mais buscar mantimentos e pão. Pouco falavam comigo. Ás vezes, no deboche, o filho que restou, Vicente, um homem maduro, me provocava com insinuações insultuosas e provocativas. Chegou um dia que ele achando que eu lhe respondera mal, não foi verdade, desferiu-me um violento tapa no rosto. Não chorei. Fitei-o com muito ódio. Como arranjara um emprego de baleiro no cinema,para me proteger dos assaltantes, comprei um punhal enferrujado. Fui ao quarto e busquei-o. Voltei. A visinha viu, da casa dela , que eu saia do meu quarto armado. Correu e avisou. Cercaram e tomaram-me a arma branca. Eu estava decidido em matá-lo. Ia matar o filho que restou ao dr. Jorge e d. Quita, que eu chamava de Pai Jorge e Mãe Quita. Assim me ensinaram e eu não ousava chamá-los de outra forma.Esperaram o dentista chegar para dizer o que decidiria fazer comigo. Estavam certos que eu seria expulso de casa. Mas, para a surpresa de todos , inclusive eu, o desfecho foi outro. O dr. Jorge ao saber do acontecido foi até o filho e disse: se ele te matasse eu acharia justo. Não se bate na cara de um homem.
Descobri que, com 12 para 13 anos, já era um homem. Fiquei feliz em sabê-lo. Resolvi tomar atitudes de homem. Corri atrás de empregos. Fui vendedor de doces na rua, engraxate, faxineiro, ajudante de caminhão, etc. Já chegava a 1,80ms. de altura. O pessoal da casa era de baixa estatura. Mais um motivo de ódio. Eu era alto e bonito. Já chamava a atenção das meninas-moças. Brigavam por minha causa. Passei a experimentar uma nova situação. Era infeliz em casa , na rua era querido e respeitado. É bem verdade que o respeito fui adquirindo em muitas brigas. Não aceitsava apanhar na rua sem reagir. Em casa já não me batiam mais. Na rua , nem pensar. E briguei muito. Levava e dava porrada. Ajudei a criar time de futebol. . Participava das festas da igreja. Enfim, na rua eu era outro. Querido por muitos moradores. Era recebido por estes com carinho e uma certa admiração. Viam em mim um adolescente que rompia com as barreiras do preconceito e do sofrimento com corágem e vigor. Era ainda um mal vestido. Naquela época, uma roupa bonita distinguia a pessoa. Os jovens como eu vestiam ternos de casemira inglesa, camisas de linho, sapatos de cromo alemão. Eu vestia brim. Os rapazes ficavam intrigados comigo.Ora, o que viam as garotas neste cara maltrapilho? Os pais temiam que a amizade virasse namoro. Tratavam-me bem, mas, nada de intimidade com as filhas, heim? Um dia, o noivo de uma visinha, Petrônio, ela Myriam, resolveu me dar roupas e calçados seus. Pouco usados e de ótima qualidade. Ele era rico. Meu Deus, que felicidade! Vesti as roupas e renasci.Quando eu sai à rua senti que a recepção geral foi outra. Galenteios e comentários elogiosos eu ouvi explodindo de felicidade. Nunca tinha sido tão feliz. Não era tanto pelas roupas mas, pelo que elas significavam. Era o famoso "banho de loja".Jurei que nunca mais vestiria os andrajos.
Eu já ajudava em casa com algum dinheiro. Tinha prazer em fazer isto. Mas continuava dormindo no mesmo quarto imundo e insalubre. Na mesma porta sobre tijolos. No mesmo colchão imundo.Tomava banho no mesmo chuveiro de água fria que ficava no banheiro construido fora da casa. Os da casa tinham chuveiro elétrico. Em casa eu não era nada. Valia ainda menos que o cão . Menos que o porco ou as galinhas . E me diziam isto sempre para que eu não esquecesse. Mas, desde criancinha na miséria, eu não conhecia uma vida melhor. Achava que eles tinham razão. Era um bosta mesmo. Uma coisa de pequeno ou nenhum valor. Quando comecei a trabalhar e ganhar o meu dinheiro, descobri que valia um pouco mais. Fiz o curso de mecânico -ajustador no SENAI. Tentei estudar à noite mas, como levantava todos os dias as cinco da manhã para trabalhar em um bar, eu e o Geraldo, nem eu , nem ele, conseguimos ir adiante. Eu tinha ótimas notas. Os professores diziam que tinha um belo futuro. Mas o presente era difícil demais. O serviço do bar era pesado. Tentei ser ascensorita. Julgava mais leve. Qual o que! Abrir e fechar porta daqueles elevadores antigos não era tarefa para um menino-moço, grandão de pouca idade. Eu e Geraldo chegávamos no colégio e o barulhinho do giz no quadro negro nos fazia dormir devido a exaustão. Lembro-me que os colegas corriam para me acordar e o professor dizia:'deixa dormir, coitado. " Faltava às aulas. Ia para casa dormir. Peguei segunda época pela infrequência. As minhas notas eram suficientes, ainda assim, para a aprovação. Mas, a lei dizia que, quem faltasse a mais de um terço das aulas ficaria em segunda época, o que chamam hoje de recuperação. Lembro-me que fiquei em primeiro lugar. Aproximava-me dos 14 anos quando, de repente,a minha mãe apareceu. Veio com uma história triste de sofrimentos no Rio de janeiro. Muitas privações. Verdade? Mentira? Nunca soube. Sei que conseguiram localizá-la no Rio e ficou sabendo das minhas condições de vida. Ela tratou de ficar por lá. Veio agora e constatou que o seu filho não era mais dependente de ninguém. Trabalhava e ganhava seu dinheirinho. Quando ela veio , eu estava numa fábrica de tecidos. Comecei levando carretéis aos teares. Em pouco tempo, para o meu orgulho, ganhava salário e comissão tocando seis teares sozinho.Uma moça muito bonita, tecelã, se interesou por mim. Ela havia terminado o namoro com outro tecelão como ela.Ele não se conformava. Certo dia, quando me viu falando com a moça, veio por detrás e , para fazer graça, passou a mão na minha bunda. Atirei um carretel enquanto corria que lhe acertou a cabeça em cheio. Continuei a falar com a moça, aora mais interessada. Ele veio , sorrateiramente, e me atirou um carretel ainda maior. As minhas costas doeram. O ódio veio e me atraquei com ele. Lemro-me que apertava o seu pescoço com todas as minhas forças. Estava cego de raiva. Vieram o meu chefe e outros colegas para impedirem que eu consumasse o crime. Graças a Deus conseguiram. O cara jurou que me mataria. Nós mesmos fazíamos facas tão amoladas como navalha para cortar os fios. Muitos tecelões morreram em brigas vítimas destas facas. Ele tinha a dele. Eu a minha. Fomos os dois suspensos. Eu não
voltei. Não por medo. Tinham me chamado para outro emprego melhor. Escapei talvez de matar ou ser morto. Escapei várias vezes quando adolescnte. Decidido a não apanhar na rua, briguei muito. Fui machucado.Cheguei a construir uma fama ruim de valentão e brigão. A qualquer momento poderia matar ou morrer numa briga. A minha mãe voltou ao Rio para acertar pendências que ela deixou por lá. Não disse que ia voltar. Mas estava decidida. Tinha agora alguém para alimentá-la e protegê-la: o seu filho renegado. É uma outra história.

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