terça-feira, 29 de setembro de 2009

Quem quiser estudar que estude

O tempo, como sempre, voa. Passei quase três anos na Escola. Tantas coisas aconteceram em tão pouco tempo. Amadureci mais 20 anos. Eu, que já nasci maduro. Fui enrigecido muito cedo pela vida. Admito que a Escola me endureceu um pouco mais. Éramos 150 alunos. Com diretoria e empregados o total de pessoas chegaria a próximo de duzentos. Tínhamos um diretor fascista. Destes que consideram a disciplina como indispensável. Quanto mais rígida melhor. Mas, um hipócrita. Boatos corriam sobre o seu comportamento moral. Diziam que ele desviava dinheiro da Escola. Que era um D. Juan. Não respeitava nem os seus subordinados diretos. E tínhamos um Chefe Geral de Disciplina cômico, para dizer o mínimo. Era um beberrão. Vivia de fogo. Deixava com seus ajudantes a tarefa. Solon e Juca. Até que eram bacanas conosco. A parte dura os monitores cumpriam. O sr. Calvino só bebia. O dr. Paulo dirigia. Certo dia fomos correndo para a frente da Escola. Lá estavam sr. Calvino e dr. Paulo prontos para se engalfinharem. Briga de aluno era atração. De diretores era o máximo porque inédita. O dr. Paulo estava com um braço e uma perna engessados. O sr. Calvino fazia, em altos brados , uma grave acusação ao desafeto: havia seduzido a esposa do vice-diretor.Dr. Paulo dizia que ele era um bêbado sem moral. E partiu para cima do sr. Calvino brandindo a muleta e arrastando a perna engessada. Um braço na tipóia e o outro segurando a muleta. O chefe de disciplina, Inspetor, estava tão embriagado que , ao tentar revidar o ataque deu com a cara na árvore e esborrachou-se no chão. Corremos e ajudâmo-lo a se levantar. Voltamos para os nossos lugares na grama da praça em frente à Escola. Ninguém ousou ocupá-los. Nos sentamos e ficamos a observar. O sr. Calvino atacou e conseguiu acertar um soco no dr. Paulo. Ele procurou se apoiar na muleta mas, não deu. Caiu esparramado à nossa frente. Enquanto isto o sr. Calvino punha para fora os podres do dr.Paulo. Falou horrores. Ficamos perplexos! Era muito mais do que supúnhamos! Os alunos até babavam de satisfação. O dr. Paulo estava acabado. Não teria mais ambiente para ficar . O tirano se ia. Liberdade!
Realmente, logo que chegou o atendimento ao seu pedido de transferência ele partiu. Antes foi programada uma festa de despedida. Eu havia sido eleito o orador oficial da Escola. Não poderia me furtar ao pedido. Teria que discursar e dizer o que não sentia: lamentos pela partida do verdugo. Como era meu dever e teríamos uma festa farta de guloseimas , no momento acertado levantei-me e fiz a despedida. Ele chorou de emoçao. Abraçou-me e disse que não sabia que eu o tinha em tão alta conta. Sentí-me mal. Não é fácil ser hipócrita, por melhor que seja a intenção. Eu estava feliz com a partida dele! E disse que lamentava. Estava detestando aquela de ser orador . Tentei depois passar para outro. Ninguémm aceitou. Fiquei sendo.
Demorou para vir outro diretor. Quando veio, eu não o conheci. Já tinha saido da escola. Levei as recordações boas do córrego onde nadávamos escondidos da diretoria. Todos pelados. As moças vinham , ficavam olhando e a gente dizia: quem não quer ver estrela que não olhe para o céu.
Quem disse que não queriam?Não arredavam o pé. Transformaram o grupo escolar num clube de danças à noite. Lá íamos também namorar. Tive, em três anos , umas cinco namoradas. Não tinha muito tempo prá elas. Duas moravam em Ouro Fino. Uma , Cely, havia sido Miss. Ouro Fino. A outra, Marina , era filha de um plantador de café. O melhor café do Brasil, o do sul de Minas. Talvez porque emendasse com o de S.Paulo , onde o investimento era maior. Mas, o sul de Minas tinha um terreno sílico-argiloso que os cafezais adoravam. Cresciam belos e davam colheitas recordes. Eram muito bem cuidados. Os fazendeiros eram , em sua maioria, imigrantes alemães, franceses, polacos, italianos. Isto , junto com brasileiros, deu para formar uma população muito bonita. Víamos morenas de olhos azuis. Louras de olhos negros. Cabelos lisos em pele morena. Crespos em pele branca. Cely tinha cabelos negros, olhos verdes, 1, 80 ms. , um corpo de sereia. Marina era loura, olhos negros, mas não era muito alta. Tinha 1, 70 ms. e era considerda baixa para os padrões locais.Eu namorava com uma e com outra. Aqueles namoros antigos, quando, em público , nem se pegava na mão para a moça não ficar mal falada. No escurinho pintava uns beijos na boca e uns amassos. Eu me dava bem porque não levava a sério namoro nenhum. Era brincadeira e eu sabia disto. Tinha outros planos para o meu futuro e elas sabiam também. Mas, até hoje, lembro-me daquelas duas. Eram tão lindas! E gostavam de um cara tão diferentes delas! E gostavam mesmo. A iniciativa era sempre delas. A disciplina da Escola não me permitia mais.
Formei -me no curso de Iniciação Agrícola e Veterinária. Iria para o curso de Mestria. Mas veio a gripe asiática. Lá fui eu de volta para a enfermaria. Lá estava o enfermeiro homo. O professor Davini me socorreu mas, não ficou até a doença me deixar. Foi para S. Paulo fazer um curso obrigatório. Com o enfermeiro ficaram meus remédios e as recomendações médicas. Estava quase me curando da Asiática quando o ano letivo terminou. Fiz as últimas provas na Enfermaria mesmo e passei com mérito. Na verdade , na terceira bimestral eu já tinha nota para passar. Mas, a verba acabou. Quando acabava , os alunos tinham que deixar a Escola. Só voltaríamos no próximo ano letivo. Eu ardia em febre. Ainda assim, depois de passar no w.c. e deixar cair no vaso o meu dinheiro da passagem , molhando-o todo, fui para o caminhão que ia nos levar até à estação rodoviária em Ouro Fino. Estava aborrecido pela febre e pelo dinheiro molhado. Um diretor pensou que eu fazia corpo mole para não ir. Isto acontecia com os alunos pobres.Eu sonhei com este dia! Começou a me dizer desaforos. Fui engolindo até não mais poder. Virei-me para ele e mandei-o a puta que o pariu. Ele quis reagir. Impediram-no. Afinal, além de aluno eu era menor. Fui tremendo de febre. Quando cheguei a Belo Horizonte , não tendo outro lugar, embora a minha mãe estivesse em Beagá, fui para a casa do dentista. Este ficou sem saber como impedir. Sabia que eu voltaria para a Escola em março. Era quase dezembro. Deixou que eu ficasse. Se não, voltaria a dormir na rua. Quinze dias antes de voltar chega um telegrama da Escola. Comunicavam-me que tinha sido expulso. Fiz as minhas malas para Barbacena. Lá tinha uma escola igual.Depois eu conto.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A Escola

Era um prédio antigo, bem conservado. Haviam salas de aula, escritório, sala de jogos, pátio , refeitório, campos de basquete e volei, futebol. Havia também o setor dos banheiros coletivos com seus w.c.(s). Tudo muito limpo. Nos davam três refeições: a matinal, o almoço e o jantar. Havia a lavanderia onde deixávamos nossa roupa para lavar. Eu diria que, para um estudante comum, nada deixava a desejar. Os professores eram de ótima qualidade. Todos eles. Lecionavam Matemática, Português, Geografia, História, Agronomia, Veterinária, Canto Orfeônico, Francês e Educação Física. Eram rígidos , a meu ver demais, com a disciplina. Éramos tratados como se fôssemos margináis. Ou soldados. Havia até o toque de despertar. Reunir no pátio para o refeitório. Chamada para ir às aulas práticas ou às teóricas.Toque para a fila do almoço. À tarde toques para tudo outra vez. Haviam escalas. Enquanto umas turmas iam para o campo outras iam para as salas de aula. Não me queixo da disciplina férrea. Lamento mais a discriminação que havia. Os filhos dos fazendeiros ,naturalmente, tinham um tratamento diferenciado, evidentemente para muito melhor. Os demais não tinham regalias de nenhuma espécie.Não era uma prisão. Quem quisesse poderia ir embora. Como a maioria absoluta era de menores, estes teriam que avisar primeiro para que os pais fossem comunicados da decisão dos filhos. Mas, depois de submetermos-nos a um verdadeiro vestibular, desbancarmos centenas ou milhares de outros candidatos, não tinha sentido entregarmos a rapadura, por mais dura que fosse. Desistir, só se mortos. Então aguentávamos o lado negativo da escola. Como em todas do tipo, quando chega a noite muita coisa ruim acontece. Comigo não se faziam de bestas, mas os mais fracos, físicamente, os covardes se serviam. Hoje eu vejo esta campanha meritória contra a pedofilia. Gostaria de saber o que acontece nos reformatórios e colégios internos de hoje. Pouco se fala. No meu tempo, crianças indefesas eram pasto de chacais pedófilos. Eu, na escola, estava no meio, ou seja, tinha já 15 anos de idade.E tinha também já uma dura esperiência de vida. Não tinha medo de nada ou ninguém. A morte não me assustava. Arrisquei-a algumas vezes, como já contei. Mas lembro-me , como num pesadêlo, que ouvi gritos na madrugada de crianças sendo molestadas sexualmente. Pensei em denunciar. Para quem? Percebi que os diretores já sabiam. Fingiam que não. Deixavam aqueles estudantes maiores se divertirem. Já ajudavam, sem nada cobrar, a manter, pela violência, a disciplina na escola. Era como um céu de brigadeiro. Se algum saisse dos trilhos, os monitores se encarregavam de fazer tudo voltar ao normal. Os outros grandes, não monitores, não se intrometiam e não eram incomodados. Imperava então, a lei do mais forte. Mas, havia o lado bom. Jogávamos basquete e volei entre nós ou contra visitantes. Futebol também. Ainda havia, em Inconfidentes um galpão de arroz que, quando vazio, servia de local para os forrós. Então, a sanfona tocava, o bumbo retumbava, o padeiro fazia a marcação, o cavaquinho tocava e marcava e o relabucho ia até amanhecer no domingo.. Neste dia a escola permitia que chegássemos às 10 horas. Se não, o portão era fechado e os atrasados dormiriam na rua e, no dia seguinte se explicariam ao diretor. Podia acabar em expulsão. O que eu fazia? Voltava , como todos os outros, às dez. Respondia à chamada, ia para o dormitório, esperava os colegas dormirem e , pulando uma janela do segundo andar do prédio, voltava para a dança. Sempre adorei a dança. Custa barato. Você pode dançar em qualquer lugar. E a música lhe fará sonhar. Sempre dancei bem. É um dom. Há os que já nascem sabendo.
Quanto ao futebol, organizei o meu próprio time. Busquei os rejeitados. Aqueles que não tinham vaga em time nenhum. Os colegas não entenderam. Ora , eu poderia estar no time principal. Não porque era um craque, mas a minha altura ajudava muito na defesa e no ataque, para fazer ou impedir que o adversário fizesse o decisivo gol. Pelo menos os de cabeça. Joguei pela minha classe no campeonato interno. No externo, onde valia entrar os times dos moradores de Inconfidentes, eu participei com o meu time. O time dos rejeitados. Começamos apanhando de goleada. Foram diminuindo. Começamos a empatar. A ganhar. Já não riam mais das nossas trapalhadas. Nos respeitavam . Ficamos em quarto lugar em doze times. No segundo campeonato chegamos a disputar o título. Neste dia caiu uma violenta tempestade de chuva e vento. O jogo não parou. Futebol era prá homem. Até a torcida não arredou o pe´. A peleja virou primeiro uma pelada. Depois futebol aquático. Futebol a vela. O vento zunia. Depois uma coisa esquisita na lama. Quando o juiz apitou o final, ninguém sabia o resultado. Perguntamos e perguntamos. Até que uma senhora, bêbada e coberta de lama, jurou que era 8x7. Para quem???
Para o nosso adversário que foi declarado campeão. Nunca me conformei. Mais de cinquenta anos depois ainda não me conformei. Fizemos mais gols. Eles fizeram menos. Espero ir ainda a Inconfidentes para saber se alguém ainda vivo se lembra daquele jogo. Fomos confiar numa bebum!
Noutra vez, fiquei sabendo que algumas prostitutas de Ouro Fino estavam a se banhar no córrego de Inconfidentes. Era domingo. Tomara o meu café da manhã e preparava-me para ir à missa quando soube. Corri para lá. Éramos proibidos de fazê-lo. Afinal, eram prostitutas do baixo meretrício. Para mim umas deusas. Os alunos só tinham bezerras e mulas paa se aliviarem. Fora isto, só a masturbação.Mulheres o lugar tinha. Pais bravos também . Maridos assassinos idem. E agora aparecem as prostitutas. Dariam de graça? Só procurando saber. Eu já estava no meio delas. Fui chegando e, sem dar bola para os gigolôs que lá também estavam, e que riam do aluno taradão, me agarrei às mulheres. Talvez porque se identificavam comigo, também eu era um discriminado,sempre tive sorte com prostitutas. Não me cobravam o mixê. E haviam as que até punham algum trocado no meu bolso. Naquela tarde eu as vi melhor ainda que no passado em Belô. Eu estava, desesperadamente, matando cachorro a grito. E eu esqueci gonorréias, cancros, sífilis, que eu sabia que elas poderiam me transmitir e fartei-me. Fiz amor com várias. Tirei a boca da miséria e, incrível, não adoeci.
Portanto, a escola não foi só sofrimento. Tenho recordações agradáveis da Escola Agrícola.
Mas, nem tudo são flores. Os espinhos grandões viriam . Depois eu conto.

A Escola

domingo, 27 de setembro de 2009

Escola Agrícola

Um amigo de infância passava as férias na casa de seu pai. Fui ao seu encontro . Ele me recebeu com alegria e me falou da escola onde estudava. Era um entusiasmado. Dizia que lá tudo era ótimo. Boa comida, bom ensino, eu ganharia material escolar e uniforme completo. Depois do curso básico de agronomia e veterinária, seria encaminhado para a Escola Agrotécnica. Depois viria o curso superior e eu me formaria como veterinário ou engenheiro agrônomo. Para mim, aquilo tudo era um sonho. Tinha um dinheirinho guardado, fruto do meu trabalho, e sabia que seria completado . Não me achavam um estorvo?Não estavam a anos reclamando pela minha incômoda presença? Teriam a oportunidade de se livrarem de mim. Fui para Inconfidentes, na época um distrito de Ouro Fino, decidido a passar no exame de seleção que haveria e que contaria com candidatos do Brasil inteiro. Foram exames escritos e psicotécnicos. Provei que poderia ser um futuro grande funcionário do campo. Depois de fazer uma viagem inédita, com baldeações em Itajubá, para seguir viagem no dia seguinte, estava agora práticamente como aluno da Escola Agrícola Visconde de Mauá.
Inconfidentes era um lugar simpático. Poucas casas e uma gente que via os alunos com bons olhos. A maioria ganhava a vida como funcionária. Os professores moravam em Ouro Fino uma cidade cosmopolita, não muito grande, na época, mas de um povo instruido e interessado na cultura geral. A Escola Agrícola ficava a 8 quilômetros de distância. A estrada era ruim, logo, para se chegar lá levava-se , no mínimo, meia hora. Hoje são duas cidades progressitas. Falo de 54 anos atrás. Lá encontrei com o meu amigo e comigo levei mais dois. O primeiro já estava adiantado dois anos. Era do cuso de mestria. Eu era do curso iniciante. Existia uma separação entre os alunos, provocada por eles mesmos. Em qualquer situação parecida sempre há o preconceito de superioridade. Mas havia também uma disciplina draconiana. Para sustentá-la haviam os chefes de disciplina e os monitores. Estes últimos, nunca soube o que ganhavam em monitorar os colegas usando a força física.Logo notei que tinha que voltar a ser o "brigão da Renascença." Não desejava ser monitor. Odiava a repressão. Fui grande vítima. Então, com meus quase 1,90 ms. de altura, fiquei entre os dois grupos. O que mandava e o que obedecia. Não desejei ser o protetor de ninguém. Mas, não aceitaria ser o lacaio de quem quer que fosse. Havia um negro forte, de braços musculosos e corpo idem, que se impunha pela valentia e era monitor. Certo dia, estando em folga, alguns alunos se reuniram no pátio superior. Haviam combinado algo em que eu estaria envolvido. Eu não sabia de nada. Chamaram-me lá e lá eu fui. Quando cheguei já estava formada a roda. No meio, José da Conceição, o negro. Perguntou-me se topava um luta sem baixaria. Eu respondi que não queria ser expulso da escola. Estava gostando e sonhava em ser alguém. Ele disse que era só uma brincadeira e que os chefes chegariam logo para ver. A turma começou a insuflar. Viram , na minha resposta, medo. Ora, medo era um sentimento que tinha morrido em mim. Quando eu vi os chefes e eles sorriam zombeteiramente, compreendi que não tinha saida. Para pegar o negro de surpresa pulei em cima dele. Rolamos e não socamos. O trato era:sem socos. Ficamos naquela de cada um por si e Deus por todos. A turma gritava querendo ver sangue. E nós dois rolamos pela grama tentando um pegar o outro num golpe fatal. Desvencilhei-me dele e , ágil, peguei-o pelo pescoço. Dei-lhe uma"gravata" e, de repente, vieram à minha lembrança as surras que eu levei na casa do dentista. Então este também quer me bater? Vou lhe mostrar! E fui apertando o seu pescoço com os meus braços. Ele se debatia tentando se livrar. Fez o que pode. Finalmente vi o corpo dele desfalecer. Percebi que outras pessoas correram para ajudá-lo. Pensei que queriam mudar o rumo da luta. Não permiti apertando mais e mais. Ouvi então gritos no meu ouvido: largue-o! Largue-o já! Você está matando ele!
Quando o larguei ele ficou desmaiado no chão. Fizeram massagens para reanimá-lo. Agora , estava presente até o diretor . Havia um alarido ensurdecedor. Eu não entendia nada. Estava como em transe hipnótico. Não tive pena do José da Conceição nem ódio. Eu desforrei nele anos de crueldade que eu vivi. Não o matei. Até hoje não sei porque. Ele era muito forte. Deve ser isto.Anos depois, em S. Paulo, seria ele um campeão de box. Com ele não mais briguei. Ele passou a me respeitar muito. Como era monitor, não dava para ser amigo. Inimigos não fomos. Havia tambem dois outros monitores. Eram jovens fortes, espadaudos. Eles impunham a disciplinaNunca mexeram comigo. Lembro-me do "Tinteiro" e do "Tarzan". Não foi o meu último conflito. Troquei socos com outros colegas. Sempre evitava machucá-los muito. Eu não provocava mas, como eu não me aliei a nehum grupo fiquei sem retaguarda. Era amigo de todos e de ninguém ao mesmo tempo. No começo, a vida na escola foi duríssima. A maioria dos colegas eram fazendeiros ou camponeses. Estavam acostumados à lida do campo. Eu vim da capital.É verdade que eu pegava em casa serviço duro. Que capinava jardim e horta. Porém, a faina da lavoura é bem diferente. Logo as minhas mãos ficaram cobertas de calos. Estes se abriam e viravam feridas. Quando chegou o frio, meu Deus! Sem agasalho ou só com o que a escola dava e que era insuficiente, vivi um frio de abaixo de zero. Aquela região é uma das mais frias do Brasil. Maria da Fé, cidade tão citada durante o inverno, onde se chega a 6 gráus negativos, fica bem próxima. Lembro-me que os meus lábios racharam , as minhas mãos também. O meu queixo tremia e chegava a doer quando os dentes de cima batiam com os de baixo.Escrevi para casa. Pedi a Mãe Quita que me mandasse agasalho. Podia ser velho, desde que fosse quente. Ela nem sequer respondeu à minha carta. Ia à agência e perguntava: chegou? A resposta: não. Ouvi-a muitas vezes. E o frio parecia me congelar. Peguei uma pneumonia. Fui parar na enfermaria. O enfermeiro, um homossexual, não gostava de mim. Os alunos eram muito "amigos" dele. Davam-lhe o que ele queria. Eu tinha asco. Não por preconceito. Ele tinha uma figura abominável. Muito limpo, perfumado até. Mas era balofo, com aquelas banhas pinduras sobre a correia. Aquela bunda grande e flácida. Não sei como os colegas se satisfaziam com aquela pessoa. E ele não se oferecia. Ficava esperando que fôssemos até ele. Pelo o prazer ou pela dor. Diziam que ele era generoso quando se satisfazia. Dava até presentes bonitos. Nada disto me atraiu. E ele me desejava. Eu era muito magro. Típico de quem cresce demais sem apoio familiar ou do estado.Mas, do alto do meus 1,90 ms. eu tinha um certo charme. Acho que tenho ainda. Então, mulheres de várias idades, menos ou mais, sempre se interessaram por mim. As bichas então, não me davam sossego. Para as mulheres tudo. Para as bichas, distância. Bicha não detesta mulher? Eu não detesto mas ,não gosto de bicha. Questão de gosto. Não é preconceito. O enfemeiro quando me viu chegando deve ter pensado: você veio, gostosão. Mas, se não dançar conforme a música vai penar.
E eu penei. Não tinha remédios. "A verba acabou". A bicha não se mexeu para providenciar. As tosses aumentando. A fraqueza também. Foi quando a escola admitu o professor Renato Davini. Tinha sido padre. Deixou a batina. virou professor. Orientador. Era uma pessoa maravilhosa. Resolveu ser nosso amigo e protetor. Tratava todos os alunos como se filhos fossem. Viu-me "entregue às baratas" e decidiu me apoiar. Providenciou medicamentos e, ele mesmo, fazia a minha alimentação. Lembro-me até hoje das gemadas salvadoras. Foi a primeira pessoa que me tratou com humanidade. Em pouco tempo, voltei às minhas atividades plenamente restabelecido.A luta continuava por um futuro melhor. Por mais difícil que fosse, eu estava determinado em resistir em prol de um futuro melhor. Depois eu conto mais.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A puberdade

É uma fase difícil para quem está amparado e amado pela família, imaginem o que foi para mim. Tinha ordem do dentista para estar em casa antes das nove. Eu e o outro que veio de Araçai para cohabitar comigo, ou seja, morar no mesmo quarto (?) , éramos tratados de formas diferentes. Ele era estimado. Pelo menos não era maltratado. Não tinha regalias. Sentia as mesmas dificuldades de dormir num lugar como aquele.Como o quarto visinho era cheio de quinquilharias, era um viveiro de baratas, moscas, ratos, lagartixas, pulgas, percevejos, formigas, pernilongos. Lá se estabeleceram , formaram família e se assentaram permanentemente.. D. Quita, a dona, não abria mão de seu antiquário. Até coisas minhas ela guardava, é justo reconhecer. Tinha umbigos dos filhos. Suas roupas em várias fases de suas idades.Brinquedo, fraldas, bicos, mamadeiras, retratos, berços, caminhas, roupas de todas as idades, ela guardava até as dela quando criança e de irmãos. Reecordações dos falecidos pais e parentes próximos, enfim , um pequeno museu familiar. Inimaginável nos tirar daquele cortiço e , numa troca, irmos para o quarto taqueado e forrado. As antiguidades valiam muitomais do que nós. Mas o Geraldo tinha algumas regalias que eu não tinha. Não comia ,como eu, em latas de marmelada, podia comer em prato. Nem era o último a comer. Não era obrigado a lavar panelas e talheres e todos os pratos do almoço e do jantar. Não era obrigado a lavar o chiqueiro , dar comida para o porco, capinar o jardim e descer , sempre que necessário uma rua íngreme para ir ao armazém ou `a padaria. Nunca o vi apanhando. O inferior da casa continuava sendo eu. Diziam: primeiro os graúdos, depois os miudos. Eu, o mais miudo de todos. As pancadas continuavam. Até que chegou um dia que eu disse: basta! Quando o dentista brandiu o chicote, já sem chorar, nos meus doze anos, eu lhe disse: bate,maldito! Covarde, aproveita que eu sou um menino. Breve não serei mais. Bate, covarde!
O dentista abaixou o chicote sem acreditar no que estava ouvindo. Eu só chorava. Nunca reagira. Os meus gritos mexeram com os brios dele. A partir deste momento, cessaram as surras. Iniciou-se um novo tempo de despreso e antipatia. Não falavam comigo. Nem exigiam que eu fisesse os trabalhos da casa. Já não me mandavam mais buscar mantimentos e pão. Pouco falavam comigo. Ás vezes, no deboche, o filho que restou, Vicente, um homem maduro, me provocava com insinuações insultuosas e provocativas. Chegou um dia que ele achando que eu lhe respondera mal, não foi verdade, desferiu-me um violento tapa no rosto. Não chorei. Fitei-o com muito ódio. Como arranjara um emprego de baleiro no cinema,para me proteger dos assaltantes, comprei um punhal enferrujado. Fui ao quarto e busquei-o. Voltei. A visinha viu, da casa dela , que eu saia do meu quarto armado. Correu e avisou. Cercaram e tomaram-me a arma branca. Eu estava decidido em matá-lo. Ia matar o filho que restou ao dr. Jorge e d. Quita, que eu chamava de Pai Jorge e Mãe Quita. Assim me ensinaram e eu não ousava chamá-los de outra forma.Esperaram o dentista chegar para dizer o que decidiria fazer comigo. Estavam certos que eu seria expulso de casa. Mas, para a surpresa de todos , inclusive eu, o desfecho foi outro. O dr. Jorge ao saber do acontecido foi até o filho e disse: se ele te matasse eu acharia justo. Não se bate na cara de um homem.
Descobri que, com 12 para 13 anos, já era um homem. Fiquei feliz em sabê-lo. Resolvi tomar atitudes de homem. Corri atrás de empregos. Fui vendedor de doces na rua, engraxate, faxineiro, ajudante de caminhão, etc. Já chegava a 1,80ms. de altura. O pessoal da casa era de baixa estatura. Mais um motivo de ódio. Eu era alto e bonito. Já chamava a atenção das meninas-moças. Brigavam por minha causa. Passei a experimentar uma nova situação. Era infeliz em casa , na rua era querido e respeitado. É bem verdade que o respeito fui adquirindo em muitas brigas. Não aceitsava apanhar na rua sem reagir. Em casa já não me batiam mais. Na rua , nem pensar. E briguei muito. Levava e dava porrada. Ajudei a criar time de futebol. . Participava das festas da igreja. Enfim, na rua eu era outro. Querido por muitos moradores. Era recebido por estes com carinho e uma certa admiração. Viam em mim um adolescente que rompia com as barreiras do preconceito e do sofrimento com corágem e vigor. Era ainda um mal vestido. Naquela época, uma roupa bonita distinguia a pessoa. Os jovens como eu vestiam ternos de casemira inglesa, camisas de linho, sapatos de cromo alemão. Eu vestia brim. Os rapazes ficavam intrigados comigo.Ora, o que viam as garotas neste cara maltrapilho? Os pais temiam que a amizade virasse namoro. Tratavam-me bem, mas, nada de intimidade com as filhas, heim? Um dia, o noivo de uma visinha, Petrônio, ela Myriam, resolveu me dar roupas e calçados seus. Pouco usados e de ótima qualidade. Ele era rico. Meu Deus, que felicidade! Vesti as roupas e renasci.Quando eu sai à rua senti que a recepção geral foi outra. Galenteios e comentários elogiosos eu ouvi explodindo de felicidade. Nunca tinha sido tão feliz. Não era tanto pelas roupas mas, pelo que elas significavam. Era o famoso "banho de loja".Jurei que nunca mais vestiria os andrajos.
Eu já ajudava em casa com algum dinheiro. Tinha prazer em fazer isto. Mas continuava dormindo no mesmo quarto imundo e insalubre. Na mesma porta sobre tijolos. No mesmo colchão imundo.Tomava banho no mesmo chuveiro de água fria que ficava no banheiro construido fora da casa. Os da casa tinham chuveiro elétrico. Em casa eu não era nada. Valia ainda menos que o cão . Menos que o porco ou as galinhas . E me diziam isto sempre para que eu não esquecesse. Mas, desde criancinha na miséria, eu não conhecia uma vida melhor. Achava que eles tinham razão. Era um bosta mesmo. Uma coisa de pequeno ou nenhum valor. Quando comecei a trabalhar e ganhar o meu dinheiro, descobri que valia um pouco mais. Fiz o curso de mecânico -ajustador no SENAI. Tentei estudar à noite mas, como levantava todos os dias as cinco da manhã para trabalhar em um bar, eu e o Geraldo, nem eu , nem ele, conseguimos ir adiante. Eu tinha ótimas notas. Os professores diziam que tinha um belo futuro. Mas o presente era difícil demais. O serviço do bar era pesado. Tentei ser ascensorita. Julgava mais leve. Qual o que! Abrir e fechar porta daqueles elevadores antigos não era tarefa para um menino-moço, grandão de pouca idade. Eu e Geraldo chegávamos no colégio e o barulhinho do giz no quadro negro nos fazia dormir devido a exaustão. Lembro-me que os colegas corriam para me acordar e o professor dizia:'deixa dormir, coitado. " Faltava às aulas. Ia para casa dormir. Peguei segunda época pela infrequência. As minhas notas eram suficientes, ainda assim, para a aprovação. Mas, a lei dizia que, quem faltasse a mais de um terço das aulas ficaria em segunda época, o que chamam hoje de recuperação. Lembro-me que fiquei em primeiro lugar. Aproximava-me dos 14 anos quando, de repente,a minha mãe apareceu. Veio com uma história triste de sofrimentos no Rio de janeiro. Muitas privações. Verdade? Mentira? Nunca soube. Sei que conseguiram localizá-la no Rio e ficou sabendo das minhas condições de vida. Ela tratou de ficar por lá. Veio agora e constatou que o seu filho não era mais dependente de ninguém. Trabalhava e ganhava seu dinheirinho. Quando ela veio , eu estava numa fábrica de tecidos. Comecei levando carretéis aos teares. Em pouco tempo, para o meu orgulho, ganhava salário e comissão tocando seis teares sozinho.Uma moça muito bonita, tecelã, se interesou por mim. Ela havia terminado o namoro com outro tecelão como ela.Ele não se conformava. Certo dia, quando me viu falando com a moça, veio por detrás e , para fazer graça, passou a mão na minha bunda. Atirei um carretel enquanto corria que lhe acertou a cabeça em cheio. Continuei a falar com a moça, aora mais interessada. Ele veio , sorrateiramente, e me atirou um carretel ainda maior. As minhas costas doeram. O ódio veio e me atraquei com ele. Lemro-me que apertava o seu pescoço com todas as minhas forças. Estava cego de raiva. Vieram o meu chefe e outros colegas para impedirem que eu consumasse o crime. Graças a Deus conseguiram. O cara jurou que me mataria. Nós mesmos fazíamos facas tão amoladas como navalha para cortar os fios. Muitos tecelões morreram em brigas vítimas destas facas. Ele tinha a dele. Eu a minha. Fomos os dois suspensos. Eu não
voltei. Não por medo. Tinham me chamado para outro emprego melhor. Escapei talvez de matar ou ser morto. Escapei várias vezes quando adolescnte. Decidido a não apanhar na rua, briguei muito. Fui machucado.Cheguei a construir uma fama ruim de valentão e brigão. A qualquer momento poderia matar ou morrer numa briga. A minha mãe voltou ao Rio para acertar pendências que ela deixou por lá. Não disse que ia voltar. Mas estava decidida. Tinha agora alguém para alimentá-la e protegê-la: o seu filho renegado. É uma outra história.

O recrudecimento

A morte de João que gostava muito de queimar criança e morreu queimado, fez-nos voltar para Belo Horizonte. Voltei triste, antevendo o que me esperava e com saudades dos tempos em Araçai.Ali, pela primeira vez na vida, fui tratado como gente. Eu, que era considerado inferior ao cão da casa... Aconteceu o velório com muito choro. Enterraram João e o choro continuou copiosamente. O clima na casa era péssimo. Eu, nos meus 10 anos, não conseguia fingir. Sentia uma sensação de alívio. O meu principal algós, sádico e desumano, estava morto. É possível que o meu rosto refletia serenidade. Isto provocou nos outros da família um acirramento no ódio que por mim sentiam.O dentista ganhou um bom dinheiro em Araçai. Um parente rico morreu sem deixar herdeiros diretos. Os parentes próximos dividiram a bolada. Entre estes, o dentista. Ele já tinha lotes que , unidos, iam de uma rua à outra. Um tinha a sua casa. O outro era vago. Resolveu construir uma casa em um e barracões junto à sua casa. Eu fui ajudante de pedreiro daqueles que, enquanto descansam,carregam pedra. Até os pedreiros ficavam sensibilizados em ver aquele menino trabalhando mais do que eles.Voltava da Escola Paroquial e ...trabalho. Pesado . Duro. Que enchia as mãos do menino de calos. Houve um que comentou:"doutor, o senhor não acha que o menino está sendo muito sobrecarregado?" A resposta foi: "está com pena? Leva ele prá você. Aqui quem come trabalha.Não vou sustentar vagabundo." Não tinha horário para brincar. Quando o homem saia, eu aproveitava e ia no campinho de peladas.Jogava um pouco e vinha para casa com medo da represália. Não raro, delatavam-me e toma chicotadas. A pele se enchia de vergões. As vezes, sangravam. A dona vinha e punha salmora para não infectar. Os visinhos ouviam, mas, nada faziam. Nos domingos, católico praticante, o casal sempre ia à missa e comungava. Eram vistos como caridosos cristãos exemplares. Em casa, a minha desdita continuava. Construidos os barracões e a casa, para mim foi destinado um quarto sem piso e sem forro. O dinheiro não deu para terminar. Colocaram uma pilha de tijolos aqui e outra ali no quarto. Sobre elas uma porta velha. Sobre esta um colchão de palha e um travesseiro de paina. Ao lado fizeram um chiqueiro. O piso do chiqueiro era acimentado. Havia mais preocupação com a saúde do animal. Afinal seria comido. Valia muito mais do que eu. Eu seria encarregado de cuidar dele. O chiqueiro tinha que ficar perfumado o dia todo. Senão, couro. Pouco tempo depois, acolheram dois rapazes parentes. Um era fazendeiro. Foi dormir dentro de casa e tinha um quarto só para ele.A mãe dela mandava dinheiro para pagar a sua hospedagem. O outro, pobre, foi morar comigo no quarto. Este, logo teria outros moradores indesejáveis. Pulgas, baratas , ratos, lagartixas. Mosquitos de várias espécies. O lençol de sacos de farinha de trigo, antes amarelados, ficaram vermelhos como o sangue que os pernilongos chupavam até estourar. Ao lado havia outro quarto, forrado e taqueado, onde a dona guardava suas antiguidades. Valíamos muito menos que aquelas quinquilharias. Comia em latas de marmelada ou goiabada. Os garfos eram os mais baratos e reservados só para nós. O dentista exigia que deitássemos cedo. A sua casa era de respeito e não permitia que entrasem e saisem a qualquer hora.Exceção para o filho dele que restou. Este logo se casou e foi morar na nova casa. Antes da morte do João até que não era tão mau.Depois, talvez porque eu não demonstrei pesar, ele endureceu muito o tratamento a mim. Parecia encorporado pelo espírito cruel do irmão.Esta fase da minha vidafoi a pior de todas. Preciso de tempo para detalhar. Fica para a próxima.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

O menino sai da rua

Estenderam no chão um pano de saco de farinha de trigo. Trouxeram um travesseiro de paina e um cobertor barato. O piso era do gabinete do dentista. Eu não notei a diferença dos bancos de bonde ou do jardim. Ou do passeio sob as marquises.Apesar do desconforto, eu tinha o colo magro de minha mãe e suas mãos ossudas passando sobre a minha cabeça.Assim eu dormia e sonhava como qualquer criança.Estava com o estômago cheio, nem sempre eu dormia assim. Muitas vezes a minha mãe encharcava o pão velho no café frio e empurrava pelas bocas minha e de minha irmã. Com fome come-se o que aparece. Eu me acostumei a comer de tudo. Instintivamente , sabia que a próxima refeiçao poderia ser no outro dia. Talvez. Ouvíamos primeiro muitos desaforos das pessoas caridosas e cristãs, antes que a comida forrasse os nossos estômagos. Mas haviam os piores que chingavam e não davam. Então , aquela primeira noite na casa do dentista foi difícil e de muito alívio também.Tinha um teto sobre a cabeça e não sentia medo dos homens maus, como dizia a minha mãe. Nos próximos dias fui tratado com carinho pelas pessoas da casa. Os visinhos, curiosos, vnham me ver. Eu era o menino que se perdeu na Praça da Estação, tão falado no rádio.Encheram-me de perguntas. Era conhecido no bairro. Ali também esmolei. Muitos moradores tinham nos dado um prato de comida. " É o menino mendigo", diziam. "Nem parece, com roupa melhor e lavado". "É até muito bonito. Não dava prá notar". A esposa do dentista , animada, contava aos visinhos porque tinha decidido me amparar por uns dias. Todos falavam que ela era uma pessoa muito generosa.Quando ela disse que fazia o seu papel de cristã as pessoas se levantaram e foram embora ressabiados. " A dona está insinuando que não somos?". Respondia que cada um com a sua consciência. Eu no meu canto, via tudo, inteligente , sentindo que havia conseguido um lar. Teria? Não era bem assim. Isso não era cogitado. A mãe prometeu buscar e ela que não bancasse a espertinha... Não sei , exatamente, o que se passou na cabeça de minha mãe.Pode até ser que ela tinha realmente a vontade de cumprir o combinado. Chegou ao Rio e viu que com uma criança talvez, duas, impossível. Meninas sempre encontram quem aceite. A minha irmã , com cinco anos, era uma criança bonita. E era uma menina. Achou até quem a quisesse como filha adotiva. A minha mãe não quis dá-la. A mim, se alguém quisesse, aceitaria a adoção. Era muito esperto, logo um pouco levado. Não me perdera? Deixei-a preocupada e com complexo de culpa pela sua negligência. Por este motivo, morreu a Vilma, minha irmã mais velha, aos três anos e meio. Adoeceu, demorou a buscar socorro esperando a chegada de meu pai. Quando ele chegou , encontrou a filha morta. Pneumonia . Mata até hoje. Naquele tempo era uma pandemia. Remédios ineficazes. Médicos incompetentes. A medicina de hoje é incomparável e a farmacoquímica também. A minha mãe começou a decair física e psicologicamente a partir daí. Era louca com a Vilma. O meu pai também. Ele nunca a perdoou pela negligência.
Mas estamos agora na casa do dentista. Os dias passam e a minha mãe, finalmente, apareceu. Veio e, como veio, se foi. Não sei o que conversaram mas, não agradou aos meus abrigadores. D. Zezé sumiu. Passou-se o tempo e...nada. O pessoal da casa ficou indignado. "Ela deu-nos um golpe de mestre". E começaram a me pressionar. Já não era mais o pobrezinho. Era o filho daquela vagabunda. Tentaram, como já contei, me entregar ao estado. Não conseguiram. Passaram então a me impor um regime draconiano. Eu valia, segundo eles, menos que o cão da casa.Logo, o cão comeria primeiro que eu. Seria então o último a comer. Se eu me queixava da comida que me era destinada eles diziam:" na sopa dos pobres comia melhor?" Como eu comia o que sobrava de todos, incluindo o cão, comia mal. Passaram a castigar e bater. Tinha agora 8 anos e por qualquer motivo e até sem, apanhava. Não podia me assentar nas cadeiras e poltronas . Não podia olhar para eles quando lhes falava. Era falta de respeito. Se eu me esquecia, couro. Todos se julgavam no direito de bater, até as serviçais. Que falta de solidariedade. Até estas, também frequentemente humilhadas, achavam que eu lhes era inferior. Quando a minha mãe voltou, a Geni ,uma negra que foi criada na casa para ser criada,tomou as dores dos seus donos e brigou ásperamente com D. Zezé. A minha mãe sempre foi de briga. Não vi, mas imagino que as duas se pegaram e a Geni levou a pior. Sobreveio um ódio compulsivo à minha humilde e infantil pessoa. Totalmente indefeso.Jogado às feras como os cristãos no Coliseu. E estas atacaram como eram. Eu chorava o dia inteiro. A todo momento, pancada.Havia um jovem filho do dono da casa. Era o mais novo de dois. Era sádico. Sentia um prazer enorme em me torturar. Punha-me de joelhos sobre grãos de milho coom os braços abertos. Se gemesse, implorasse, ou sentisse os braços cansados, pancada. Quase sempre na cabeça, com punhos fechados.Eu estava apavorado. Não entendia o porque de tanto sofrimento. O dentista , de ideologia fascista, via-me como um inferior que tinha que ser tratado como um animal a ser domesticado. Por qualquer motivo, surra. Usava o que tinha à mão. Correia, chinelo, borracha, páu, as próprias mãos se não encontrasse nada na hora da raiva. E eu gritava. Gritava muito de dor e pavor. Urinava-me e defecava-me todo."Que porcaria!", e batiam ainda mais. Adoravam bater naquela criança abandonada. Diziam que eu tinha que pagar , com trabalho, o que comia. Fazia de tudo na casa. Limpava, capinava, descia a rua íngreme para buscar alimentos para a casa.E subia. Descia e subia. Quantas vezes? E o relógio era marcado. Tinha alguns minutos para ir e voltar, senão couro.Os filhos do dentista , além de sádicos, gostavam de se divertir. Quando chegavam da rua, viam -me , deitado no chão da casa , dormindo com a boca aberta. Tiveram uma idéia muito engraçada. Foram ao fogão, acenderam-no naquela madrugada, fizeram um mingáu de fubá sem açucar e o despejaram pela minha boca adentro. Acordei sem poder nem gritar. Sufocado pelo mingáu eu lutava pela vida. Eles corrreram rindo para os seus quartos. Enquanto eu me debatia eles me avisaram: " se contar, apanha". Eu só queria viver naquela hora. Escapei da morte. Mas, não do pavor. Daí para frente vieram os pesadelos e o medo de dormir. Eu só tinha 8 anos! O filho mais novo, João, levou-me a força para um quarto de despejo da casa. Pretendia me seviciar. Fui obrigado a praticar atos libidinosos com o pedófilo, mas, quando pretendia consumar o ato, tive a sorte de uma das serviçais nos encontrar em flagrante delito. Ele deve ter feito sérias ameças à moça que nada contou aos pais dele. Este João, adorava me queimar com pontas de cigarro e fósforo. " Já viu o fósforo queimar duas vezes?" . Acendia o fósforo e dizia:"uma". Apagava-o em meu braço e dizia:'duas". Quando eu tinha 10 anos ele já não estava mais em casa. Foi ser cadete em Barbacena. Era já piloto de Aeroclube. Nós estávamos em Araçai.O dentista montou lá um consultório.Reconheço que, em Araçai, fui bem tratado. Talvez porque lá estavam só eu, uma serviçal, o dentista e sua esposa. Senti-me como se eu fosse filho deles. Cheguei a ser feliz. Até que numa tarde um teco-teco surgiu no horizonte. Em vôo rasante passou pela cidade. Pressenti o perigo. Vi que era o João. Estava tão bom ali sem ele!Por que tinha que aparecer? E se aquele avião caísse? Tudo iria ficar ruim prá mim de novo! Saí pela rua gritando: "Vai embora! Vai embora!" O tecoteco deu mais dois rasantes.As ruas cheias de gente admirando a proeza. E subiu, subiu, até ficar pequenino lá no céu.Vimos que o motor parou. E o avião veio caindo, caindo , em parafuso. A uma distância do solo, viu-se que tentavam acionar o motor, sem êxito. O avião caiu mais,bateu com uma asa na caixa-dágua de uma casa, e se espatifou contra o muro. Corri para lá. Vi uma fumaça negra subindo e um fogaréu. Senti, ainda distante, o cheiro terrivel de carne humana queimada.Vi , primeiro o João. No avião, se queimando, o corpo de seu colega de farda, Wallace. João estava sentado e dava para ver o seu corpo todo queimado. Fedia também a carne queimada. Um cheiro que demorou a sair das minhas narinas. Levaram-no para um cômodo de uma casa próxima e deitaram-no sobre folhas de bananeiras. Alguém já tinha ido buscar socorro e avisar o Aeroclube. Iriam mandar outro avião buscá-lo. Pousaria , como João tinha feito, em Curvelo. Até Araçai foram de carro ambulância. Vi João,que gostava de me queimar, todo queimado.Depois eu conto mais.Agora eu paro para respirar.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Uma nova tragédia

O pasteleiro tinha pressa e saiu me arrastando , puxando pelas mãos. Assustado , debati-me. Já era um pequeno veterano sobre os perigos da rua. A minha intuição me avisava : não obedeça! O homem ,enfurecido, me agarrou o braço com força. Vi que ele me levava para um matagal. Gritei e esperniei.Senti que, se ali entrasse com ele, além do sofrimento, jamais sairia. Estava tudo imerso na escuridão. Não havia postes de iluminaçaõ. Apesar da sujeira, podia-se notar que eu era um menino bonito, com a pele muito branca, os cabelos louros, os olhos que pareciam mudar de cor. O ideal para pedófilos. Certamente, se cedesse, além de estrupado seria morto.Não havia testemunhas. Tudo absolutamente deserto. O pavor tomou conta de mim. Debati-me e chorava convulsivamente. Os meus gritos seriam ouvidos?Se foram, não apareceu ninguém. De repente, ele mudou de idéia. Será que eu daria um bom dinheiro? Era um maltrapilho. Não seria um desaparecido? A minha aparência não era de um pedinte. Resolveu investigar. Quando chegou à pastelaria para fazer o acerto, havia um rádio ligado. Nele, a minha mãe chorava e implorava pela minha devolução a quem me tivesse encontrado. Deu o endereço de um quarto de despejo, que nos servia de moradia, na rua Tefé, bairro Renascença.Esta rua era de moradores de classe média. Não era vila nem favela. Ele estava certo? Poderia tirar vantagem do meu encontro? Pegou-me pelo braço e foi , antes mesmo de acertar os pastéis para evitar questionamentos, para o endereço da minha mãe. Descemos do bonde e subíamos a rua Tefé quando vieram ao nosso encontro um senhor e um jovem. Também ouviram os apelos, me conheciam e, por caridade, desciam para ajudar na procura. A sorte lhes ajudou . Eu subia ao encontro deles. Não vi,mas, imagino que deram uma gorjeta ao pasteleiro. Ele cobraria.
Levaram-me então para a casa deles e lá me deixaram para que eu fosse alimentado e tomasse banho. Arranjaram até roupas novas. Fazia muito tempo que eu não era tratado com tanto carinho.Foram então até à Emissora onde estava a minha mãe para avisá-la que eu estava a salvo,na casa deles. Quando ela chegou, alimentado e limpo, eu dormia pesadamente no chão do consultório- o homem era dentista- e eles pediramm à minha mãe que me deixasse e buscasse no dia seguinte. Foi o que fez. No dia seguinte, também de roupa limpa , ela e minha irmã, depois de aceitarem a refeição que ofereceram, sentou-se no sofá da sala e chorou. Perguntaram-lhe o que acontecia, já que , encontrado, o momento era de alegria. Ela então contou a sua história que comoveu a todos . Eu, num canto da sala ouvindo. Foi quando ela , em lágrimas, contou que o irmão, morador do Rio de Janeiro, Chefe de Trem, havia lhe arranjado um emprego, com salário suficiente para cuidar dos filhos. Mas, então , alegria! Porém , tinha que se afastar dos filhos. Não a aceitariam se soubessem que era mãe solteira de dois. O argumento sensibilizou-os. Perguntaram :o que eles poderiam fazer?
- Seria possível, que ficassem com o Paulo por uma semana enquanto me ajeito no Rio. Vou tentar que a minha irmã queira ficar com ele e a irmã. De qualquer maneira, em uma semana eu volto para buscá-lo.
-Só uma semana?
- No máximo.
Voltou dez anos depois. Os meus receptores se sentiram enganados. Era um 171? Tinham sido feitos de trouxas? Largou o abacaxi e se mandou? Não vamos descascar!
Começou aí um tempo negro de retaliação covarde sobre uma criança indefesa. O ódio que passaram a ter da minha mãe transferiram para mim, o mais inocente de todos. No começo não foi ruim. Até que fui bem tratado. Achavam que a minha mãe tivera dificuldades naturais mas, como me amava,não me abandonaria como se fosse um traste qualquer. Lembro-me que comia do melhor, passeava, era tratado como nunca havia sido. Isto provocou ciumes nos filhos e outros moradores mais antigos da casa.Formaram um grupo de oposição a minha efetivação como membro da família. Cogitou-se no início a adoção. A oposição foi tenaz. Era um menino de rua. Como poderia ser tratado como filho? E eles, apesar de católicos devotos, não se propuseram a este tipo de solidariedade e fraternidade. Ficou decidido que, se a mãe não viesse buscar, encaminhariam-me a um orfanato ou coisa do gênero. Quem tinha obrigação era o estado. Não eles. A minha mãe deixou claro que não reapareceria. Iam passar alguns anos até que desse notícia.Quando deu, foi para dizer que, apesar da saudade, era impossível me buscar. Enquanto isto, como eu era um garoto extranho, que brincava com crianças invisíveis, conversava e ria com elas, concluiram que eu era um deficiente mental. Fui levado ao Instituto Pestalozzi. Fizeram os testes e concluiram:além de normal, é muito inteligente. Foram então ao Instituto Alfredo Pinto. e ao João Pinheiro. Peguntaram se era uma criança infratora. Não era? Então não poderiam ficar comigo. As procuras findaram mas, o ódio cresceu. Contra mim. Seis anos de idade! Como poderia ser culpado de alguma coisa? Se investigassem mais, descobririam que eu tinha uma avó que vivia sozinha, numa casa de vários cômodos.E uma tia que tinha várias casas alugadas. Um avô paterno que era proprietário de casa e galpão de trabalhos artezanais. A casa dele ainda existe. Lá mora uma prima, em plena praça Hugo Werneck. É ,hoje, a mais valorizada de Belo Horizonte.Refiro-me à praça. Já lhe ofereceram muito dinheiro. Não precisa. Prefere a casa.Ao invez de procurar, preferiram maltratar com crueldade indescritível
uma criança indefesa.Começa uma nova e dura fase desta minha saga. Continuarei narrando. Por mais que me custe ao coraçaõ.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A saga continua

A minha mãe, Maria José do Vale, que fora convidada a participar de concursos de beleza de sua época, agora era um trapo humano. Poder-se-ia dizer que ela se mantinha viva para que nós , eu e minha irmã, com menos de três anos ambos, pudéssemos viver. Parecia um cadáver ambulante. Os ossos proeminentes se destacavam sob a veste surrada e única. Os olhos tristes e fundos de tanto chorar, pareciam perdidos na incerteza. Quem daria um emprego àquela pobre mulher? Nem como prostituta do mais baixo meretrício. Nada mais existia nela que lembrase a jovem de poucos anos atrás. E passara há pouco dos vinte anos de idade...Tinha que mendigar. O corpo doente e cansado das tristezas não servia-lhe para nada. O espírito estava abatido e desiludido. Só os filhos lhe restava. E éramos como duas cruzes pequenas mas, muito pesadas. Tentou creches. Irmãs de Caridade não tiveram caridade. Nos recusaram. É verdade que, por causa da guerra, os orfanatos estavam lotados. Europeus e asiáticos eram trucidados e nós sofríamos a consequência deste genocídio. Morriam lá de bomba e bala. Morríamos aqui de fome. Lembro- me de muitas coisas ruins. Não consigo lembrar-me das boas, se é que houveram. Por exemplo, lembro-me da sopa dos pobres. D. Dulce , esposa do interventor Benedito Valadares, junto com d. Sara , esposa do prefeito JK, criaram o que chamaríamos hoje de ONG, com o objetivo de fazer caridade ou ocupar o tempo ocioso das madames da alta sociedade. Faziam chás beneficentes e uma sopa, que, uma vez por semana, era distribuida aos mais miseráveis entre os miseráveis. Lá íamos nós. Era uma sopa suculenta. Tinha até carne!Para comê-la, tínhamos que enfrentar um fila enorme. Era um quadro dantesco. Pessoas maltrapilhas e fedorentas ansiosas por um prato de sopa. Ganhávamos um pãozinho cada um. Eu tinha que alimentar a mim e as lombrigas, tão comuns entre os pobres até hoje. Elas infestavam o meu intestino e, por certo, os de minha mãe e irmã. Mas, que sopa gostosa! Só quem já passou fome sabe como é agradável uma sopinha quente chegando no estômago. Depois íamos para um ponto de bonde. A minha mãe pagava uma passágem para ela- crianças de colo não pagavam- forrava o banco , deitava-nos e ficava sentada a dormir. Já éramos conhecidos dos motorneiros e condutores. Os passageiros até dividiam conosco a sua pobre merenda. O colo da d. Zezé era o nosso travesseiro. As suas mãos ossudas deslizavam pelos nossos cabelos a acariciá-los. Não raro, as gotas das suas lágriamas caiam sobre os nossos rostinhos. Nós não ligávamos. Já estávamos acostumados. Eu acho que ela, apaixonada, lembrava com saudades dos carinhos do meu pai. Talvez voltasse um pouco antes, quando era o "doce-de-côco" de sua família. Só eu e minha irmã lhe restaram. Eu já era, com três anos, um valioso colaborador. Aprendi rápido a arte da mendicância. Certa vez, a criança aflorou em mim. Passávamos em frente a uma pastelaria. Deveria estar com muita fome. Vi pastéis deliciosos em cima de um balcão. Não exitei.
Fui até lá e peguei um pastel. Estava a devorá-lo quando veio um grandalhão. Disse impropérios para a minha mãe e desferiu-lhe um violento ponta-pé na bunda. Nunca esqueci esta cena. Por causa de um mísero pastel! Lembro que ela chorou muito, de dor, vergonha, impotência. Certa vez o meu pai passava, como sempre muito elegante, ladeando uma jovem. A minhamãe mandou-me que fosse até ele e pedisse algum dinheiro. Lembro-me muito bem o que aconteceu. Cheguei e ele apertou o passo para que eu não o alcançasse. Corri e agarrei-o pelo paletó. Ficou furioso. Desvencilhou-se de mim, voltou até onde minha mãe estava e também desferiu-lhe um ponta-pé . Lembro-me que choramos eu, ela e minha irmã. Assim o tempo foi passando. Eu diria quem acostumamos até com a miséria. Já não me importava em dormir na rua. Se me humilhavam ainda era invulnerável. Era criança demais. Outros acontecimentos iguais aconteceram. Não vale a pena repetí-los. Até que chegou o Dia da Vitória. Os Aliados venceram às forças do Eixo. A guerratrouxe de volta os pracinhas sobreviventes. Todos esperavam por dias melhores. Getúlio havia promulgado a CLT que redimia a massa trabahadora. Diziam que ele se baseara na "Carta d'el Lavoro" de Mussolini. Deve ter sido invenção dos integralistas, nossos fascistas tupiniquins. Os italianos executaram , com muito ódio, o ditador fascista.A CLT socializava as relações entre o capital e o trabalho. Acho que está mais para o "New Deal" do presidente FDR. Roosevelt viera ao Brasil para saber se era verdade que Getúlio simpatizava com o fascismo. Getúlio nunca foi nada mais que getulista. Era um caudilho como tantos da época. Mandou encarcerar os fascistas e eles tentaram, comicamente, derrubá-lo do poder.Se deram mal. Getúlio mandou prendê-los agora como inimigos. Ele sabia ser um. Contam que dirigentes integralistas molhavam as calças quando o DIPE chegava. Os comunistas eram presos cantando a Internacional. Tudo indicava que, cedo ou tarde , dominariam o mundo. Isto é outra história. A minha ,fala de um garoto que, no entusiasmo da volta dos pracinhas, foi à Praça da Estação com sua mãe e irmã participar da festa cívica e patriótica. Festa bonita, com foguetes, música e discursos inflamados. Eu aproveitei para brincar de motorista em em meio as pessoas. Resultado: perdí-me de minha mãe. Talvez até ela, cheia de ufanismo, não tenha percebido, de pronto, o meu desaparecimento na multidão. Quando percebeu e saiu a procurar, um pasteleiro, ao ver chorando e sozinho, ofereceu-se para levar-me ao encontro da família. Antes, deveria ir aos patrões fazer o acerto da venda dos pastéis. E ai, começa a terceiira parte da minha saga. Depois eu conto.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A minha saga

O meu pai, Ângelo Suzana, segundo os seus conhecidos, era um homem bonito , vestia-se com muita elegância, era um profissional trabalhador e destemido, ousado industrial e químico. Apresentava um diploma de Engenharia Química que não podia ser contestado, já que era comum , em sua época, doutores em várias áreas ou diplomados em curso superior que nunca frequentaram uma faculdade. O país, imenso e imerso em miséria e atraso, tinha que aproveitar até os aventureiros que, pelo correio, mostrassem certa vocação para a função universitária. Comprava-se até patentes militares para a Guarda Nacional. Era "o tempo dos coronéis". Diziam que era a "Força Desarmada do Brasil". Não era bem assim. Estes "oficiais " tinham o direito de organizar suas milícias com armas bem sofisticadas e mandavam nos seus domínios tiranicamente. Até "Lampião", cangaceiro que mandou no nordeste durante 25 anos , ganhou a sua patente: capitão. O trato era o de combater o "Cavaleiro da Esperança", Luis Carlos Prestes, que assustava o governo de Arthur Bernardes com a sua coluna armada e treinada. Lutando e vencendo , Prestes cruzou o país. Mas, "Lampião" não aceitou combater Prestes. Dizem que chegou a vê-lo mas o bandido gostava de reverenciar um "cabra macho". O meu pai também foi um destes. Segundo o relato de um dos seus próximos companheiros, embora paulista, aliou-se à Getúlio Vargas para depor Wshington Luis e impedir a posse de Júlio Prestes, governador paulista e candidato à presidência vitorioso na eleiçao de 1930. Getúlio, derrotado nas urnas, tirou do conterrâneo Luis Carlos Prestes o direito natural de líder nacional. Assumiu o comando da revolta e se colocou, num governo provisório,como Chefe. Prometeu que entregaria o poder em 1932, após realizar uma eleição com voto universal. Pobres, negros ou brancos, mulheres , teriam o direto ao voto. Os paulistas não gostaram da idéia. Não queriam mudança na regra do jogo. Mas, sem a a juda dos mineiros com quem revezavam o poder, tentaram uma revolta militar que chamaram "Revolução Constitucionalista". Os mineiros, que já eram aliados de Getúlio, o apoiaram para sufocar o movimento. Washington Luis errou quando quis impor o seu candidato paulista ao cargo de presidente. Sem Minas, S.Paulo enfraqueceu-se. Mas eu dizia que,meu pai, embora paulista , filho de italianos, foi à luta por Getúlio. Foi até comandante de um pelotão civil. Não foram muitos os combates, a vitória foi mais rápida do que se imaginava, mas Ângelo Suzana foi para a linha de frente e eu ouvi de um dos seus ex-subordinados que ele foi comandado por um bravo. Na verdade, era um grande aventureiro. Gostava de correr perigos. Quando veio para Minas, foi para não morrer. Estava marcado pela "vendetta" . Seduzira uma filha de um importante imigrante italiano. Casou-se com a moça a força mas jurou que não viveria com ela. Pegou outra moça, que ele amava,e fugiu com ela. Sabia que podia ter duas famílias ultrajadas atrás dele. Foi parar em Itajubá-sul de Minas. E amineirou-se totalmente. Nunca mais voltou a S. Paulo. Quando a minha mãe conheceu-o ele havia se mudado para Belo Horizonte, recém-inaugurada capital de Minas, que atraia aventureiros de toda a parte. Terra de cego, quem tem um olho é rei. O meu pai tinha muitos olhos. Parecia um inseto. Um belo inseto sem nenhum escrúpulo. Associou-se a vários tipos de indústrias. Quebrou várias vezes. Processava os sócios acusando-os de armar contra ele. E ganhava. Era um profisional da falência. Abria, com sócios, falia, e saia depois como vitorioso. Se fazia de bobo e fazia os sócios, que queriam tirar dele, as maiores vítimas. A minha mãe tinha quatorze anos quando empregou-se na sua empresa .. Entrou como operária. Tinha uma letra linda e como , naquele tempo, tudo era escrito a mão, o meu pai resolveu aproveitá-la como sua secretária. Ou já estava armando o bote. Ela era muito bonita, um morena sedutora. Menina-moça, virgem, enfim com todos os requisitos para um conquistador. Ele era um Casanova. Já tinha oito filhos com a esposa e, certamente, outros fora do casamento. Sim, ele era casado novamente. Pela lei, um bígamo. Além de tudo, fraudulento. Tudo forjado. A documentação dos filhos e da "esposa" não tinha validade e era criminosa. Eles eram também vítimas . Creio até que o casal também. Como o divórcio não existia e o casamento era indissolúvel, para fugir do preconceito, apelaram para a farsa. Não sei porque, mas estes filhos preocuparam meu pai. Talvez pela fachada. Ele era um homem de família e isto era bom para os negócios.O contrário, péssimo. Porém , sem pensar nas agruras de minha mãe, vinda de uma família de mineiros e baianos, muito tradicionais, ele a levou a aceitar um relacionamento extra-conjugal. A minha mãe era a jóia da família. Com certeza, os seus pais previam um casamento estável e seguro. Quando viram a minha mãe tomar o rumo indesejado, a expulsaram do seu âmbito. Ela,apaixonada, entregou-se ao seu lindo amor. Talvez se considerasse com sorte por ter encontrado um homem tão bonito e engenheiro. Ela , uma pobre moça do interior.Talvez o meu pai tenha de fato gostado dela, mas, moralmente estava preso à outra que largara tudo e fugira com ele. Italiana também, estava alijada da família. E já lhe dera oito filhos e esperava mais um. E com minha mãe foram três. Duas e um. Para a tristeza da minha mãe e do pai também- dizem que ela era linda- uma de minhas irmãs morreu aos três anos de idade.Pneumonia, a doença que ceifava milhões de vidas , especialmente de crianças.A união dos dois estava perigando. A segunda guerra mundial, que se iniciou logo depois que eu nasci, provocou uma crise mundial sem precedentes. Nada se exportava ou importava. O comércio exterior seriamente prejudicado. As indústrias falindo. Com estas, a do meu pai. Ele cortou os gastos extras. Entre estes, nós. Eu, minha mãe e minha irmã de meses de idade. Fomos postos no olho da rua. O castelo que a minha mãe, cuidadosamente construiu com muito amor, ruiu como se fosse de cartas.O meu pai saiu e simplesmente nos apagou de sua vida. Assumiu a mulher que já ia para o décimo primeiro . Fomos morar na rua. A família da minha mãe considerava a mim e minha irmã como "os bastardos". Bem, até os meus irmãos nos viam deste modo. O que eles não sabiam é que eram também. Meu pai nunca teve um filho que não fosse bastardo. Teve mais dois , com outra mulher. Também tinham documentos forjados. Como a verdade sempre vem, descobriu-se, mais tarde, que uns eram bastardos, eu e minha irmã, os outros produto de uma fraude. Mas, não sei porque, os que meu pai mais despresou foram eu e minha irmã. Não se importou com a nossa súbita e total miséria. Abandonados por todos. Não me lembro de nenhum religioso a nos dar apoio. O governo tinha tantos problemas parecidos que não estava disposto a sair procurando mais.Passamos a dormir nos bancos de jardim. Nos bondes. Nos passeios. Nos abrigos. Nas creches. Comíamos o que nos era dado de esmola. Fomos até motivo de uma reportagem no "Estado de Minas", primeira página. A cidade era pequena e todos se conheciam. Nós éramos conhecidos como as belas crianças mendigas. Se tentaram nos seviciar? Certamente que sim. Escapamos e muito tempo depois eu vim a saber porque:eu tenho um espírito protetor. Ele sempre está a meu lado , me guardando dos perigos do mundo. Sou muito ousado. Devo ter puxado ao meu pai em várias coisas. Nesta também. Ele também tinha esta proteção. Todos terão? Talvez sim. Mas o caminho está traçado e não podemos fugir dele. O meu pai, indiferente ao nosso sofrimento, levava a sua vida normalmente, ou seja, era um industrial em busca da recuperação. As mulheres continuaram a cair no seu charme de inveterado sedutor. Tinha até um automóvel, privilégio de muito poucos na época. Nada transparecia nele estar em dificuldades. As mulheres diziam que ele era um "gentleman". Elegante, vestia ternos de casimira inglesa, gravatas de seda, camisas de linho, sapatos de cromo alemão. E eu, minha mãe e minha irmã vivendo da caridade de algumas pessoas generosas que nos davam um prato de comida e pão. Enfrentando o frio e a chuva ao relento. A família de minha mãe era abastada. Eu tive uma tia que tinha várias casas. A minha avó materna e meu avô tinham casas também. Os avós paternos tinham uma casa e um galpão em uma avenida valorizada : a "do Contorno". E nós na rua como três mendigos famintos e maltrapilhos.Ficamos quatro anos dormindo na rua. Pretendo contar a minha história até os presentes dias. Mas, vamos por partes.

sábado, 5 de setembro de 2009

O futebol, hoje, no Brasil

Está triste o futebolque os brasileiros assistem hoje. O mercado exterior, com os seus euros, levam qualquer jogador que, além de jovem, esteja despontando. Não precisa ser craque. Se for regular, estão contratando. Os clubes ficam atrás dos agentes, oferecendo o seus melhores. Compreende-se que há necessidade desesperada de dinheiro. Mas, o que é realmente necessário é uma administração competente. Temos dois clubes muito bem dirigidos. Em primeiro, está o S. Paulo. É uma empresa de futebol. Exemplar e ao nível das melhores do mundo. Está ganhando os melhores títulos. Vende, compra, isto é normal. Anormal é vender no desepero. Para cobrir deficit que se avoluma. Há clubes que devem tanto, que melhor seria se fechassem , fizessem a liquidação dos débitos através de uma massa falida, pagando o que devem, relativamente, para depois reabrirem do zero. Acho que deveriam dispor até dos troféus. Torcedores ricos os arrematariam. Se quisessem , depois fariam a doação ao clube ressurgido. Mas, a Justiça deveria acompanhar o processo para evitar que o ressurgimento não fosse sério. Se renascerem da mesma barriga, virão com os mesmos vícios. Depois, convidariam a torcida para serem sócios da nova empresa. Seriam sócios ordinários ou preferenciais. Comprariam ingressos para a temporada inteira e pagariam em prestações. Ou Bancos financiariam a aquisição para uma , duas, ou mais temporadas. Teriam cadeiras cativas no Estádio do Clube ou do povo. Banheiros seriam administrados. Para usá-los , pagaríamos uma taxa para financiar as despesas. E não teríamos aquele aspecto imundo dos banheiros de muitos estádios. Os torcedores teriam , do clube, ônibus confortáveis para conduzí-los ao estádio. Também teriam direito a um certo número de camisas, chaveiros, enfim, o que a torcida adora possuir. Tudo incluso no pacote do sócio da empresa de futebol. Com isto, poderíamos concorrer com os clubes europeus. Pelo menos, até certo ponto. O país tem que ser rico e também o seu povo para pagar estas fortunas que ganham os super-craques. Não só do futebol. Qualquer craque, de qualquer esporte, ganha muito dinheiro dos seus clubes. É a lei capitalista da oferta e procura. Super-craques são poucos, logo, caros. Mas, vendemos um bonzinho, por pouco dinheiro. Lá fora, vira ótimo. Temos vários exemplos.Passa a valer muitíssimo mais. Outra coisa: eu não aceito esta ladainha de dizer que há reservas e titulares . Nos esportes coletivos, fora o futebol, todos são titulares. O cara ficar no clube, comendo quieto, ganhando bem para não fazer quase nada, limitado aos treinos, não é aceitável!A FIFA pretende mudar as regras do esporte bretão. Como no futsal, haverão sustituições de acordo com o técnico, não com a regra de hoje, paradas com número determinado para descanso, instruções e uma aguinha fresca. O torcedor será beneficiado com um jogo dinâmico, com jogadores no limite de suas forças e competência. Por que , no futebol o atleta tem que se exaurir sob um sol tropical?Está cansado? Pede ao técnico um tempo, sai , decansa e se o técnico quiser, volta-o para o campo. Todos serão substituíveis e reaproveitados no decorrer da partida. Se está no banco, está disponível. O técnico decide.Até o goleiro poderá sair e voltar. Creio que vai aumentar a motivação de todos ligados ao clube.E vai valer a pena comprar a temporada de futebol. Se o sócio não puder ir ao jogo, terá direito a dar ou vender o seu lugar neste jogo. Se o torcedor não for sócio , pagará o ingresso se , no momento do encerramento, houverem lugares disponíveis para este tipo de torcedor. Poderá este torcedor comprar de um sócio. Haverá controle da Justiça para que não prospere uma máfia do futebol. Talvez uma legislação apropriada.
Enfim , há que mudar. Não pode continuar como está. Diretores tirando proveito político do clube, não se importando se o arruina. Quantos deputados e senadores foram eleitos pelo futebol?E o que adiantou?Mudança, já!

O futebol brasileiro de hoje