quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O golpe

Lembro-me que estava trabalhando, em hora de almoço, quando, voltando da pensão em que eu comia, vi que , na rua Tamoios, em BH, passavam caminhões do Exército cheios de soldados. Estes pareciam atônitos. Vi que estavam todos em silêncio e dava para perceber uma enorme preocupação. Olhei para as bancas de jornais e não vi nenhuma edição extra. As pessoas paravam vendo o desfile sombrio sem entender. Mas os soldados estavam equipados para a guerra. Havia um clima de golpe e só não sabíamos se Minas estaria a favor ou contra. O Governador Magalhães Pinto, poucos dias antes, declarara, ao lado de Jango, que Minas, berço da liberdade, seria contra qualquer tentativa de implantação de uma ditadura fosse de esquerda ou direita. Acreditamos porque a ditadura não serviria aos interesses dele, candidatíssimo à presidência em 1965. Só se o ditador fosse ele. Magalhães ditador? Não dava para crer. Porém, quando eu vi os soldados tive um pressentimento ruim. Se o movimento golpista houvesse partido do Rio de Janeiro ou São Paulo seria esperado. Mas, de Minas? O Estado que sempre se postou contra a tirania não poderia ser o artífice de uma. Sempre nos reuníamos para articular, pacíficamente, o apoio às reformas de base. Fazíamos comícios relâmpagos, trepados em caixas ou engradados, sem microfone, para divulgar as novas idéias. Nunca pregamos um revolução sangrenta. Sentíamo-nos protegidos pelo acesso ao poder das forças civis mais representativas do povo. As forças armadas, que víamos como heróis da luta contra o eixo fascista , não iriam transformar o Brasil numa ditadudura de direita.Se a ameaça se concretizasse , estávamos dispostos a morrer pela liberdade. Os generais Mourão Filho e Guedes foram hábeis ou precipitados na conspiração. Pegaram todos de surpresa até mesmo os seus aliados. Lembro-me do Governador Lacerda , cercado no Palácio do Governo do Rio, vociferando contra o que ele chamava de irresponsabilidade criminosa. No início, parecia que Jango iria sufocar o movimento rapidamente. O segundo exército estava indeciso, o terceiro parecia enfileirar-se , partindo do Rio Grande do Sul, ao lado do presidente. Brizolla, que havia , no comando da Rede da Legalidade, garantido a posse do cunhado, em 1964 era apenas um deputado federal. Candidato certo a presidente em 1965. Poderia estar tramando um golpe de esquerda? É verdade que ele e Magalhães teriam que vencer JK, o favorito absoluto. Mas, arriscar um golpe? Não acreditava. Pois foi o mineiro que conspirou e liderou o golpe. Como o bom-bocado não é para quem o faz e sim para quem o come, Magalhães ficou a ver navios. Quanto muito, lhe deram um Ministério sem força política ou militar. Um prêmio de consolação. Castelo Branco nos pareceu um personagem que surgiu das sombras e terminou nas trevas do anonimato. Parecia apenas o instrumento de um grupo que o usava para atingir objetivos ainda mais funestos. Serviu ao Brasil neste particular macabro. Não permitiu que a extrema direita chegasse ao poder. Circulavam listas de políticos e outras pessoas ligadas ao governo deposto, direta ou indiretamente , que seriam sumariamente executadas.. O expurgo atingiria a todos que preocupassem ao novo sistema, entre estes, estou certo , eu estaria. Não temi pela minha pessoa. Era solteiro. Nada tinha a perder. Estava pronto para entrar num grupo de resistência armada contra os golpistas. Com o passar do tempo, e com a fuga dos nossos líderes para o exterior, percebi que não teríamos sucesso. E que, também, favoreceríamos o recrudescimento da ditadura que se instalava. Passamos a pensar na possibilidade de uma resistência pacífica. Esta duraria anos. Eles não entregariam o poder facilmente. Tinham as armas e o apoio dos EUA. Estes, depois do susto que Fidel lhes deu com os foguetes atômicos, não estavam dispostos a contemporizar. Iam jogar sujo. Mandaram para cá vários especilistas da CIA em repressão científica, ou seja, tortura sofisticada. Houve um destes que serviu nas delegacias políticas de Minas. Dizem que foi ele que criou a maquininha elétrica. Fios descampados era ligados aos bicos dos seios das presas e ao tésticulos dos presos. Rodava-se uma manivelinha e o choque elétrico era insuportável. Quem passava perto destas delegacias ouvia o grito desesperado dos torturados. Eu fiz parte da JEC, JOC e ajudei à JUC. Eram grupos católicos , liderados pela nova igreja que surgiu após as enciclicas do Papa João XXIII. Os dominicanos eram os mais ativistas.O que queriam ? O comunismo ateu? Não. Queriam as reformas de base: bancária, agrária, estudantil, social, enfim as necessárias para um novo Brasil.Os cléricos conservadores os odiavam. Vários, denunciados por estes, foram presos e torturados. Se não houvesse a Anistia saberíamos hoje de coisas horríveis. Tem que ser irrestrita, disseram os próprios companheiros de esquerda. Eu sempre fui contra. Nada tenho para esconder. Mas, muitos que têm ficaram isentos da justa punição. Muitos amigos sumiram. Nunca mais os vi. É verdade que alguns foram para o exílio e não quiseram voltar. Porém, muitos não voltariam, mesmo que quisessem. Já não pertenciam ao mundo dos vivos. Morreram no exílio chorarando de saudade de sua pátria. Quantos foram parar no fundo do mar? Ou dos rios ?. Ou a sete palmos abaixo da terra? Eu, por estar com idade avançada, jamais saberei. Mas, os meus netos saberão de tudo que houve nos porões da ditadura. A nossa luta pacífica contra ela foi incansável. Não perdemos um só minuto . Durante o tempo todo, em 22 anos , resistimos. Usamos todosos recursos de uma luta sem armas. A nossa era a palavra. Tal como Ghandi, na India, vencemos. As multidões foram para as ruas em protesto. As forças de repressão nada puderam fazer. Quantas vezes eu estive com uma metralhadora apontada para o meu peito? O soldado me olhava fixamente. Esperava só o grito: fogo! E eu não estaria aqui contando esta história. Mas os títeres teriam caido mais depressa. A um povo decidido não existe a força do canhão. A história da humanidade mostra isto em várias oportunidades. Lembro-me de, certa vez, em uma de nossas passeatas, chegamos à porta do palácio da Liberdade. Nome supimpa! Os soldados aguardavam a ordem e nós começamos a cantar o hino nacional. Haveriam umas 50 mil pessoas em silêncio. Muitos , entre estes eu, com uma vela acesa iluminando as trevas da ditadura. Quando irrompeu o Hino os soldados ficaram perplexos. Aprenderam que, diante do Hino tinha que se perfilar. O povo perfilou-se. Alguns soldados fizeram o mesmo. Outros ficaram olhando ansiosos para o oficial.Todo mundo chorando. Soldados também. O Comando mandou que os soldados voltassem aos quartéis. Nós nos retiramos cantando outros hinos. Entre estes, a Internacional Socialista. Dá prá imaginar, com toda aquela carga emocional, um coro de 50 mil vozes? Foi maravilhoso.

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